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Mostrando postagens com o rótulo Cultura brasileira

SEU NOME É GAL

                Em julho de 1979, quando era estudante de técnicas agrícolas em Uruçuca, Bahia, fui participar de um treinamento no município vizinho de Itajuípe. Nada de excepcional em princípio, a não ser a carona que tinha conseguido com um dos instrutores. Enquanto olhava pela janela do carro o desfile monótono das matas de cacau, com seus variados tons de verde, um fato marcante aconteceu: ele pôs para tocar uma fita cassete do último álbum de Gal Costa, recém-lançado.   A cantora era a favorita da minha geração, seus sucessos estavam na boca de todos, mas eu não tinha a dimensão de sua grandeza como artista, ouvia-a simplesmente quando tocava nas rádios.             Até aquele dia, em que pude ouvir do início ao fim o álbum Gal Tropical, com direito a reprise. Enquanto as canções se sucediam, a paisagem mudava à minha volta, ganhava uma inesperada belez...

COGUMELOS AZUIS

                                                                 “Zebu morreu, ele se fudeu, cogumelo é meu!” Ventania             De tempos em tempos, é preciso pingar colírio alucinógeno, usar lentes caleidoscópicas ou tomar cachaça no gargalo. Depois, fugir pras montanhas, quem sabe recuperar um pouco do tribalismo primitivo inerente à espécie. Tem festa no interior, tem lua cheia. Tem bandinhas tocando na frente da igreja desde o meio da tarde. E, quando a noite cai, promissora e fria, tem carreata da santa, sem andor, mas em cima de uma caminhonete. E tem salvas de fogos!              A fogueira é acesa no meio do largo para aquecer o coração de crentes e pagãos, cit...

CRETINOS!

           There’s no stopping the cretins from hopping, não há mesmo, nem que o vinil fure de tanto tocar aquele rock dos Ramones. Esses debilóides vão pular a noite inteira. A OPEP e o petróleo, a guerra do Vietnam e a ditadura, a caça às bruxas, os proletários e os intelectuais se radicalizando, os jornais falando de pós-Napalm e AI-5, explosões e fugas, você só ficará sabendo dias ou semanas depois. E,  fais gaffe, meu amigo, os cretinos estão espreitando por toda parte pra te dedurar.             O que pode um pobre rapaz fazer? Aprender a viver com pouquíssimo, um par de jeans, t-shirt, tênis, mais uma jaqueta de couro pra quem mora no frio de Nova Iorque. O mundo é gris e melancólico, meio hippie, meio anti qualquer coisa, buzu, metrô e longas, longuíssimas jornadas a pé, se cruzar com milicos no caminho, não os encare pra não levar cana. Take a walk in the wild sid...

O ALFARRÁBIO

(Imagem: macelginn.com.br)          A cultura anda às traças em nosso país. Meu amigo Jack me contou a história de um amigo dele, professor de faculdade, que se viu desempregado e precisou sacrificar a preciosa biblioteca reunida ao longo de trinta anos. Tirando Bakunin, Paulo Leminski e clássicos da língua portuguesa, contou Jack, todos foram pra fila do bric-à-brac .          “Eu disse a ele que livros usados não têm valor. Ele me levou até a biblioteca e me mostrou uma seleção de obras diversas, ensaios, coletâneas completas, belos livros da José Olympio ilustrados por Poty, livros raros como os de Mendes Fradique e versões originais de Pau Brasil de Oswald de Andrade e Feuilles de Route de Blaise Cendras, lançadas em Paris em 1928. - Vou fazer uma boa grana junto às livrarias da Savassi, afirmou, batendo em meu ombro”.          “Na semana seguinte, quan...

MISTÉRIOS DA CULTURA

(Imagem: observatoriodaidentidade.org.br)             Depois da celeuma em torno da extinção e posterior recriação do Ministério da Cultura, parece que a questão da cultura, ou a falta dela, voltou à tona no Brasil. Seja pela capacidade de mobilização demonstrada pelos artistas, seja pela conotação política do ato, caberia perguntar de que cultura se está falando, num país onde poucos têm acesso a ela.             É ponto pacífico que a cultura fornece coesão e identidade a um povo.  Ela é espontânea, mas não aleatória e, assim, todos os países criam meios para promovê-la. Com exceção dos Estados Unidos, onde o sistema é descentralizado para evitar uma “cultura oficial”, os demais países divulgam uma cultura nacional.             O sistema americano funciona muito bem, pois as comunidades de bairro ( art dist...

A ARCA DE NOEL

(Imagem: www.curiosidadesgerais.net) Dizem que, nos tempos de Noé, bicho valia tanto quanto gente. Esta é uma causa justa, razão pela qual todos deveriam ler a Bíblia. Mas Noé também foi conhecido por sua longevidade – e dizem que naquela época os homens viviam muito, coisa de séculos. Adão teria vivido 931 anos e Matusalém, 969. Adão teria sido o pai de todos nós, o que se explica facilmente, tendo ele vivido tanto tempo. Matusalém ganhou uma palavra com seu nome. A gente mesquinha vive menos de cem, o que para alguns é pouco e para outros é muito, por incrível que pareça. Quem vive no mundo da Internet não imagina a chatice que era ser jovem no passado. Ainda que os avós enalteçam as maravilhas do Jeep Willys e o óleo de fígado de bacalhau ou Emulsão Scott (verdadeiro responsável pelo baby boom segundo minha mãe), eu me recusaria a voltar à infância só para não tomar esse remédio infame – mas reconheço que só estou aqui por tê-lo tomado no passado para curar uma persisten...

CONVERSA DE ÍNDIO E MULHER BRANCA

                   Tam! Taram! Tam! Antes de instalar a lei da selva, índio enviou mensagem à presidenta: “Querer é poder, diz homem branco. Indio quer, índio pode. Igualdade entre povo tapuia e os pelotudos” (era assim que se referiam aos homens brancos). Manifestaram-se diante do congresso nacional e nos estádios de futebol, dançaram o huka-huka, pintados para a guerra.          “Indio quer falar com homem branco nas terras do povo Xamainam”. Não respeitavam Brasília e seu Lago dos Cisnes, por isso a conversa aconteceu no Parque do Xiang, próximo a Manaus (informação que pode ser facilmente verificada em um mapa).          O grande cacique branco levantou o cetro da sabedoria:          - O quê índio quer?          - Indio qué muié.      ...

BRASIL FUTEBOL CLUBE

(imagem: focusfoto.com.br)             Naquela época, a televisão ainda engatinhava e o rádio era o grande meio de comunicação de massa. Jornais não havia no lugar e, se houvesse, faltariam leitores. Cinema, só mesmo o que os meninos inventavam, uma película de plástico, recortada e colada em tirinhas, sobre a qual se desenhavam, a caneta esferográfica, aventuras dos heróis das fitas de cowboy. Entrada: 10 palitinhos de fósforo. Ainda assim havia filas. Quando a Copa do Mundo começou, as transmissões soavam distantes, pareciam vozes de outras galáxias ecoando através do espaço sideral. Nas ruas de terra batida, brincávamos, tentando imitar os lances contados e recontados pelos cronistas. Suprema democracia da infância: lado a lado jogavam Müller, Pelé e Bob Moore! As bolas de plástico já existiam, não precisávamos mais de bolas de meia. O único problema é que o plástico rompia-se facilmente em atrito com o chão á...

VIZINHOS S. A.

               Fui tirar o carro da garagem e divisei um monte de entulho pelo retrovisor. Em frente ao terreno baldio, segundo lote à direita, pedaços de tijolos e cerâmica, restos de areia, cimento e brita. No dia seguinte, fiz a mesma manobra e o montinho tinha crescido com o acréscimo de alguns pedaços de madeira de demolição; no terceiro dia, apareceram troncos e galhos de plantas retirados do quintal de alguém e ali providencialmente despejado. O monte transbordou e se espalhou pela rua quando apareceram móveis velhos e portas comidas por cupins. Alguém aproveitou a chance e completou a pilha com papelão, sacolas plásticas e madeira de construção.            Ao investigar o caso, todos puseram a culpa na prefeitura, a começar pelo vizinho do lado:             - A caçamba da limpeza não passa há dois meses. A rua virou depósito de lixo. Que v...