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Mostrando postagens de 2020

COCO COM PIMENTA

  (Traipu, AL, terra de Luiz Vieira, que me contou esta história.) Escreveu não leu o pau comeu, no Nordeste não tem disso não.             Na vila de Escorial, às margens do Rio São Francisco, a vida corria tranquila naqueles idos de 1960. Os únicos eventos extraordinários eram o encalhe de uma barca na rota para Piranhas e as datas do calendário católico, celebradas com pompa e fervor. Dia de São Miguel, Dia de São Pedro (o padroeiro da cidade), Festa de Bom Jesus dos Navegantes. Sobre as águas mansas do grande rio circulavam barcos, cholas (canoas de médio porte, capacidade até 300 sacos), canoas de pescadores e, sobretudo, canoas de toldo ao velho estilo, algumas capazes de transportar até 600 sacos ou 36 toneladas.   A cultura ribeirinha aflorava nos cânticos dos condutores das balsas e nos bailes de coco, com sua mescla de música e dança. Todos se alegravam, inclusive os meninos. De modo gracioso ou perverso, como só os moleques de antigamente sabiam fazer.             Xioli

O INCRÍVEL RÚCULA

              Por alguma razão, toca-me escrever sobre meus amigos, tanto vivos quanto mortos. Na medida em que o tempo passa, o segundo grupo aumenta, e é com tranquilo pesar que vejo em cada um que se vai o lembrete de que minha hora também há de chegar. Enquanto espero, vivo (tranquilamente) todas as horas, escrevo (inevitavelmente), que seja como forma de aumentar minha poupança para a viagem final.             Cada pessoa tem um toque especial que merece ser lembrado, Roberto Soares, um amigo dos anos 90 em Belo Horizonte, tinha uma notável veia satírica e uma atitude udigrude (underground) muito simbólica daquela época. Venho agora a saber do seu passamento e lanço ao vento estas poucas impressões.             Numa tarde de fim de ano, lá pelo ano de 1995, enquanto caminhava pelo campus da UFMG, deparei com um show muito louco, em frente ao prédio das Ciências Humanas. Esses shows eram promovidos pelo DCE, os artistas eram amadores, como aqueles que então ocupavam o calçadã

MORTE E VIDA DE LUIZ VIEIRA

  Lúcia, Luiz, Rose e eu.              Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres, escreveu Manuel Bandeira em um dos seus últimos poemas. O bardo teve um longo tempo para se preparar, após confrontar o fim com tenros dezessete anos de idade. Por isso é bom nos prevenirmos, o fim virá com ou sem motivo.             Para a maioria, morte é fato inédito , tristeza, esquecimento, solidão, vazio de coração raso e mente enrijecida pelo materialismo. No entanto, não era para ser assim.             Tão certa quanto o dia e a noite, deveríamos enfrentá-la sem comoções e até mesmo saudá-la como o poeta, por que não, sem mágoas, compreendendo que se trata apenas da passagem para outro nível, no qual a noção do tempo se desfaz.             Está no Eclesíastes: para tudo há um momento debaixo dos céus, tempo para nascer e tempo para morrer. Está na tradição budista, para a qual os fenômenos são dominados pela impermanência e vida e morte são inerentes e complementares, duas faces da

CANÁRIOS

                Além de pouco stress, muita segurança, boa qualidade de vida e ser uma cidade pequena ligada ao mundo - não apenas conectada -, Timóteo surpreende por um aspecto que passa praticamente despercebido à maioria: o grande número de animais na zona urbana, entre os quais os passarinhos.             Domésticos, desgarrados ou silvestres, os animais nos dão um belo exemplo de coexistência. Cães com coleira, acompanhados dos respectivos donos, desfilam por toda parte como filhos bastardos. E há também os solos, cães vadios independentes, que percorrem as ruas com desenvoltura e dão lições de civilidade a certos humanos, como a de atravessar – sempre - na faixa de pedestres.             Micos podem ser avistados em vários lugares, vez por outra um guaxinim morre sob as rodas dos carros, garças (pelo menos um casal delas) procuram alimento nas águas turvas dos córregos que cortam a cidade, jacus frequentam quintais em alguns bairros, pardais feito praga, rolinhas, bem-te-v

DR. JOÃO

            O Dr. João é o optometrista mais conhecido da cidade. Fazia parte dos assim chamados rolhas de poço ou botijões de gás, gente que cresce tanto para os lados que tanto faz vê-las em pé ou deitadas.             De um natural bem humorado, o Dr. João inspirava cuidado quando circulava pelo consultório, bufando para erguer os cento e oitenta quilos e movê-los entre bureau e o refratômetro. Sentado do outro lado da mesa, o cliente tinha medo de que ele tivesse um enfarte durante a consulta, e manifestava alternadamente simpatia ou dúvida, como se a obesidade afetasse suas habilidades profissionais.             É claro que não, ninguém é melhor ou pior por ser gordo ou magro, cada biotipo tem sua quota de sacrifício, os delgados são muito procurados para se fazer linguiça e os rechonchudos têm que enfrentar os assentos dos aviões.             Bromas à parte, o Dr. João é um ótimo profissional. Despacha seis ou sete clientes por hora, nem o Google Doctor faria melhor.

PELA CIDADE

            Receber o feedback do leitor é tudo que o autor deseja. Ainda mais de um leitor fiel, que conhece suas histórias melhor do que você, que indaga sobre os personagens, os lugares, tece liames com outros campos. Eu afirmo que tudo é ficção, tenho péssima memória, esqueço nome de pessoas, lugares, eventos, tenho que me servir da imaginação para traçar linhas e delinear histórias. Além disso, não custa acreditar que sonhar é melhor do que viver e que a arte está alguns degraus acima da realidade, algo assim como uma taça de vinho que rompe o torpor da tarde de domingo, quando você pensa no fim e no que virá depois dele - inevitavelmente, a segunda-feira.               O leitor insiste, eu o perdoo. Está cada vez mais difícil encontrar histórias interessantes, todas já foram contadas e recontadas pelo cinema, esse narrador supremo do mundo moderno. De vez em quando alguém parece dizer o que ainda não foi dito, gera debates, mundos e fundos da mídia de merde, que vive pelo

DITADURA CHINESA

         - Filho, já fez a tarefa?          - Daqui a pouco, assim que terminar esta partida.          - Não quero ver ninguém resolvendo problema de matemática na hora de deitar, isso faz mal pra saúde.          - Matemática faz mal pra saúde?          - Estou falando de ir pra cama tarde e, além do mais, estressado. Como o senhor vai levantar amanhã cedo, hein?          - Estou quase terminando.          Você vai  cuidar de outros arranjos e, meia hora depois, o gamemaníaco continua apertando as teclas do computador, com a precisão de um sniper, e em plena escuridão, para despistar. E você é obrigado a reiniciar a conversa em tom mais duro, que o leva inevitavelmente  a interditar o computador.          Padecemos da fraqueza da democracia, por isso temos muito a aprender com os chineses: seiscentos pares de olhos oblongos levantando o cartãozinho vermelho para determinar a vida de um bilhão e trezentos milhões de pessoas e ai de quem não seguir a cartilha ao pé da