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Mostrando postagens de 2013

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DA BANDA FILARMÔNICA

             Sentado em uma poltrona marrom encardida, seu Alfa assiste a seu programa favorito na TV. Não se trata do “Show da tarde” nem do “Jornal das quatro”, mas sim do “shoptime”, cheio de novidades interessantes, como o multiprocessador Vavita, uma revolução no mundo dos alimentos. O multiprocessador Vavita é prático, fácil de usar e pode ser comprado em trinta vezes no cartão. Seu Alfa ergue as sombrancelhas ao ouvir a oferta anunciada pela garota-propaganda, ou melhor, senhora-propaganda.             Pelas paredes do quarto, diversas lembranças e fotos penduradas. Em uma delas, seu Alfa posa com a equipe de futebol do exército. “Eu era lateral esquerdo”, afirma com uma ponta de orgulho. Na clássica formação de metade de cócoras e a outra metade em pé, ele aparece aprumado e confiante, deve ter sido um bom lateral. Em outra foto, ele perfila com farda e capacete debaixo do braço. “Sou o do meio, na primeira fila”, aponta com um viés de nostalgia. - Era muito difíci

A MORTE DO VENDEDOR DE PICOLÉ

(imagem: www.humortalouco.com.br)                     Esta cidade tem tanta coisa interessante! Um pó cinza escuro   que se deposita sobre os móveis, uma obra em cada esquina, muitas mulheres bonitas, vendedores e compradores de todos os tipos, policiais e viaturas. Todos trazem sua contribuição ao bem comum e dele se beneficiam, mas alguns se beneficiam mais do que trazem, como os larápios e os políticos. No caleidoscópio da malha social, vários tipos se cruzam e interagem, cada um buscando o seu próprio caminho. A cidade não é mãe, apenas madrasta: pode recompensar ou punir, mas jamais terá sentimentos. O chão onde se pisa é responsabilidade de cada um.             Ainda que o chão seja o mesmo para todos, os fortes, os fracos e os onissos. Automóveis, bicicletas, caçambas e pedestres. Vendedores ambulantes, entre os quais viceja a dura luta que as classes populares têm que encarar no dia a dia. Um verdureiro fabricou sua banca segundo o modelo de um carro de bois, com r

ZAÍRA E OS POETAS

                Não é todo dia que se é convidado para uma reunião de poetas. Especialmente quando não se é um, como é o meu caso. Mas escrevo também sobre poetas, e tomara que isso acabe me impregnando de algum modo, já que a poesia é um mistério que me assusta e fascina.             Fascina-me pela natureza de sua revelação: nem todos conseguem combinar as palavras de modo a obter o efeito poético. Alguns dirão, talvez a maioria, que tudo é uma questão de técnica e que poesia se aprende fazendo, que é um oficio de palavras, etc. Mas não é. Poesia supõe uma afinação entre emoção e palavra - qualquer que seja a emoção, sublime ou decadente – que não se obtém por simples querer. Ela não exige sequer um determinado nível de instrução ou cultura (como bem mostra Patativa do Assaré, “poeta da roça”, como ele mesmo se definia), pode surgir no ser e depois desaparecer (vejam o caso do Rimbaud, que abandonou a poesia para ser um reles comerciante nômade) ou manifestar-se na idade

A LUZ E O ELEVADOR

(Foto: wordpress.com)             Certos indivíduos são vítimas de perseguições infundadas, preconceitos mesquinhos, ilações maldosas. Algumas categorias também. Só porque você padeceu naquele voo para Nova Iorque, espremido como um limão entre dois lutadores de luta livre, não está autorizado a sair por aí dizendo que a obesidade deveria ser punida ao mesmo título que os crimes de lesa-majestade e a propaganda enganosa.             Como é sabido, as companhias aéreas mantêm aquelas poltronas com espaços macróbios para a classe menos abastada por razões financeiras e também sociais. Julgam que os comedores de hambúrguer-batata frita, os membros da Vigilantes do Peso (aquele grupo que se reúne regularmente para conferir quanto cada um engordou no mês) e tamanhos extra large em geral devem sentir no estômago a inconveniência de serem cidadãos fora das medidas.             Só o cronista não repousa em seu labor denodado para levar ao leitor o registro fiel dos fatos, sem dei

A SEREIA DO TÂMISA

                                 A noite caía promissora sobre o South Bank, com ventos ligeiros soprando no sentido leste-oeste e algumas nuvens carregadas no céu, coisa habitual para a capital inglesa. Sob os últimos raios de um sol incerto de verão, muitos turistas caminhavam descontraidamente ao longo do cais, provenientes do London Eye, um dos últimos ícones arquitetônicos implantados na paisagem dessa Londres tão moderna quanto antiga, tão calma quanto agitada, tão melancólica quanto irônica. A roda gigante, com suas cápsulas de vidro que percorrem os 360 graus em ritmo de caramujo, fazia o último giro da jornada, as luzes se acendiam, era tempo de buscar novas aventuras. Eu acabara de fazer uma ótima refeição no Azzuro, um restaurante italiano localizado sob os arcos de uma antiga estrada de ferro. Como todo espírito avisado, eu sabia que em Londres é preciso a todo custo evitar a abominável comida inglesa, a menos que você possua uma conta recheada de libras par

FUXICOS

  (Imagem original: ahappylass.com)    Acho que, salvo um ou dois defeitos mais graves, a humanidade tem jeito e progride decididamente em direção a um futuro brilhante de compreensão e tolerância. As únicas guerras a persistirem no futuro serão por motivos fúteis, como disputas pelas riquezas dos territórios, divergências políticas e religiosas, ou mesmo a cor da tinta para se pintar o nariz nos dias de votação do congresso nacional ou julgamento do STF (Suprema Tolice e Falácia). Haverá também guerras de nervos entre os partidários de diferentes torcidas, sem esquecer as guerras de audiência que farão os estúdios de TV parecerem sucursais do zoológico.             Hoje em dia dá no mesmo ser ignorante, sábio, vesgo, sacristão ou senador. Na fila do Disneyworld somos todos iguais. Tenho uma amiga que adora fazer compras em Miami, já virou mania: tá deprê, avião pros States, sai de férias, avião pros States, precisa de uma cortina nova, avião pra Cubatão. Já lhe disse

CRÔNICA MAIS VELHA DO QUE EU

Tem gente que não se entrega fácil.                        Não chego a ser um early bird,  um pássaro madrugador, mas estou no trabalho pontualmente às quinze para as oito da manhã. Considero um privilégio rodar por uma rua desimpedida, curtindo o sol leitoso da manhã enquanto os pensamentos vão e vêm, como se tivessem vida própria - entram na mente, ajudam ou avacalham segundo o humor do dia, e depois se mandam em busca de outro hospedeiro. Por isso, é preciso estar alerta e fechar a porta àqueles que não possuem outro propósito que não o de te atanazar. Pensando bem, deveríamos retificar o ditado: ao invés de nos preocuparmos em levantar com o pé direito, seria melhor levantarmos com o pensamento direito.             Seria esse o segredo do Padre Abdala, que me dedicava uma pacífica saudação todo dia às sete e quarenta e cinco em ponto? Eu descia do scooter, retirava o capacete e via o padre caminhar entre a casa paroquial e a igreja. “Bom dia, Padre Abdala!”; “Bom dia!”.

A UTILIDADE DE UM VELHINHO

                    Desculpem, senhoras e senhores, eu realmente não quis dizer velhinho ao pé da letra, uma vez que uma pessoa de sessenta ou setenta anos de idade não é mais velhinha hoje em dia. Ao contrário de tempos atrás, quando ter cinquenta anos significava estar um caco e ultrapassar o limiar dos sessenta era botar um pé na cova. Don Quixote, o personagem decrépito da famosa novela de Cervantes,   era um ancião lunático e caquético aos cinquenta anos. E podemos considerar que estava de bom tamanho se compararmos aos tempos antigos, quando os homens morriam na guerra entre os vinte e os trinta anos e, mesmo as mulheres, que não lutavam de escudo e espada estavam sujeitas a uma morte precoce, de tifo ou de parto. Mas, depois do antibiótico e do viagra, até pessoas de oitenta anos estão bombando e não será grande surpresa se prolongarem a procriação até a terceira idade.          Eu mesmo, no alto dos meus cinquenta e oito anos, sinto-me saindo da adolescência – que j