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Mostrando postagens de 2018

SESSENTA ANOS

            Muita gente já passou por isso antes de mim, não tenho do que reclamar. Você conquista enfim a maioridade e pode gozar do privilégio do caixa especial e da mente tranquila. Aos 60 anos, você não precisa provar mais nada, a não ser que dá conta de subir aquela escada de 50 degraus ou tocar a ponta dos dedos dos pés sem ficar torto como um anzol. Nada que se compare ao vexame de ser barrado na entrada por suspeita de que ainda não completou a idade legal: te pedem um documento de identidade, tal qual o guarda rodoviário, conferem a data de nascimento, olham bem na sua cara para conferir se não é carteira falsa, fazem mentalmente as contas e concluem que você pode REALMENTE passar na frente dos demais. Um amigo me disse, não sem uma ponta de ironia, que a adolescência termina aos 60 anos. Estou propenso a discordar dele.             Ainda que alguns fatos da minha vida recente provem que a maturidade nos faz muito bem e até nos dá ares de sábios. Por exemplo, confesso

LITTLE RED ROOSTER

                         O galinho de Quintino foi um famoso jogador de futebol e o Little Red Rooster, um blues de Sam Cooke regravado pelos Rolling Stones: “I got a little red rooster Too lazy do crow for day”, “Ganhei um o galinho vermelho Preguiçoso demais pra cantar para o dia nascer.”             Na fazenda, o canto do galo anuncia a aurora que desponta, no entanto, é pouco provável que ele desperte os demais bichos, além de algumas galinhas e humanos preguiçosos. Os galos mais disciplinados começam a cantar assim que percebem a claridade crescente. Depois que o sol nasce, vão cuidar de outros afazeres, como defender o galinheiro e se alimentar. Quando se aposentam desse ofício, geralmente viram canja.             A ironia fica por conta dos galos da cidade. Ao contrário dos cães, gatos, iguanas, hamsters e, ultimamente, até crocodilos, que gozam dos mimos dos humanos sob o apelido de “pets”, os galos da cidade costumam ser intrometidos que canta

UM, DOIS, PANGARÉ MANCO!

             Emanuel Talvez entra na padaria:             - Duas salsichas para o meu cãozinho Molusco e um camembert   para minha ratinha Isabela.             A funcionária não gosta do que ouve:             - O senhor acha que eu tenho cara de quê?             Emanuel faz gracejos:             - De uma bela senhora. Muito prazer, sou Jesus Emanuel Talvez, vim a este mundo para desaborrecer.             - “D” o quê?             - Não é “D”, é “T” de “tatu”.             - O senhor é louco!             - Obrigado pela franqueza. Mas antes da salsicha e do queijo, preciso de uma informação: você sabe onde fica o hipódromo?             - O Hipódromo dos Afortunados? Segue reto, em dois dias o senhor chega lá...             - Então dá tempo de fumar um cigarro. Voilà o pagamento, madame...             É domingo de manhã e J. E. Talvez toma o caminho do hipódromo como quem vai em busca da última dose de rum. A padaria judia foi um   feliz acidente, essas func

NOVES FORA 7 DE SETEMBRO

(Imagem: Vida de Turista)             Saí par ver o desfile de 7 de Setembro, afinal, o centro da cidade fica pertinho daqui e o som dos tambores chega a meus ouvidos como uma música de fundo à hora do café dominical. Trata-se de uma caminhada de cinco minutos, a rua está praticamente livre, não há multidões, poucos veículos, dá para ouvir passarinhos, gatos, cachorros e galinhas ao longo do caminho. O desfile é modesto e discreto, nem de longe lembra as paradas de antigamente, aquelas que os pais de vocês contam, ou seja, as pessoas da minha idade, e mostram nas antigas fotos em papel: a mamãe desfilando de bailarina, o papai tocando bumbo, o tio trajado de imigrante alemão ou japonês. A única animação evidente é a do narrador, colocando sobre o palanque onde se reúnem certamente o prefeito e mais meia dúzia de autoridades, além de um grupo de senhoras que participam do cortejo vestidas de fantasias a carnaval e dançando ao som de música idem. Logo atrás delas, o contraste. Fe

ÔNIBUS! BUU!

  (Imagem: pt.coolclips.com)             No Interior, não é fácil encontrar matéria para uma crônica, o que me leva a escrever sobre cães e galos e a inventar causos. Mas, na capital, não faltam motivos, bons ou ruins, dependendo do ponto de vista ou do humor do dia. É no meio das multidões de desvalidos que moem seus sonhos nesta imensa fábrica de injustiças que se sente o verdadeiro peso da vida. Vejamos os prosaicos ônibus, sobre os quais já escrevi mais de uma vez, essas caixas de metal, desconfortáveis de doer, que constituem a base do nosso transporte coletivo e dos quais nossas cidades grandes dependem como um ser vivo depende do oxigênio.               Convém lembrar que os coletivos são caminhões adaptados a partir do design dos carros de bois do velho oeste, com um cubo de aço, duas fileiras de assentos estreitos e duros de PVC de cada lado e tubos de metal que dividem os diferentes compartimentos. Não diferem em nada dos troncos usados nas fazendas para sujeitar os

É DE MORTE

         Se viver está difícil, imaginem morrer. Nossa história começa com um homem sentado a cavalo sobre uma janela do décimo-quinto andar do edifício Acaiaca. Sem camisa, e com o peito reluzente ao sol da tarde, ele grita frases obtusas, imprecações, clamores, promete se lançar no vazio, ou,   pelo menos, é isso que chega aos ouvidos dos passantes lá embaixo.   Uma pequena multidão acaba se formando nas calçadas de uma das esquinas mais movimentadas do centro de Belo Horizonte. Há quem finja conhecê-lo: “Desça daí, Alfredo, sua mãe vai morrer do coração!” Há quem apele para seus sentimentos cristãos: “Arrependa-se, e confie no perdão divino!” Alfredo, ou seja qual for o seu nome, responde apoiando-se no peitoril da janela com ambas as mãos, como quem está prestes a saltar. Isso provoca uma reviravolta dos curiosos, muitos se afastam com medo de serem esmagados, ouvem-se gritos histéricos, chega a polícia militar, o trânsito é interrompido por uma faixa de isolamento, buzinaços

O NOVO CICLO DO ATRASO

(Foto: Estadão)              Qualquer tentativa de dissociar o governo Temer do governo Dilma é mera ilusão e não resiste aos fatos. Não apenas porque os dois foram eleitos juntos por duas vezes, mas também porque, ao quebrar o verniz ideológico que cobre o antigo partidão, o PMDB, e o novo partidão, o PT, damos com o mesmo caroço. Não foi por isso que fizeram uma aliança que sobreviveu por três governos e meio, na qual atuavam juntos como carne e unha? Que discordâncias havia no congresso entre os dois grandes aliados nos tempos das vacas livres? Apenas pequenas brigas de egos e disputas por cargos. Se houve algum cisma relevante, que alguém dê um passo adiante e se pronuncie. O casal que hoje parece improvável não trocava antes juras de amor eterno? Não loteara o congresso nacional: controle do senado para você e controle da câmera para mim? Os cargos comissionados, os controles dos órgãos e empresas públicas não eram rateados equitativamente, assim como a propina?          

CELEBRE-TE

(Imagem da Web)          Vivemos num mundo obcecado pela fama, pela celebrity. Até mesmo quem não leva jeito para a ribalta faz trejeitos de famoso e diz que mora no Soho. O argumento é de que é no alto e na moleza que muito se ganha fazendo nada ou muito pouco, conforme o velho ditado: os de cima bebem água limpa e os de baixo chafurdam na lama.             Na era da comunicação instantânea, ficou muito fácil ser uma celebrity. Bastam cinco mil likes, dez mil votos em uma petição para salvar as baleias mink, uma participação no reality show Big Butt Brazil ou, em último caso, uma ponta de comediante-ministro no governo Michel Temer. Já tem gente vendendo o pouco que lhes resta, como a virgindade ou a alma, para amealhar um lugarzinho no topo da página do que antes chamaríamos de pasquim online, mas que agora deve ser denominado fake celebrities.             Uma vez conquistado o rótulo de celebrity, poderá participar de comerciais da JBS e do Banco do Brasil, assinar livr

KEEP WALKING

                       Então você descobre que aquele hábito antigo pode ser retomado depois de mais de vinte anos e que os joelhos, assim como as demais articulações, além dos músculos, coração e pulmão, enfraquecem-se muito mais com o sedentarismo do que com a marcha dolorida. A dor, afinal, tem também seu lado abstrato, depende da importância que se dá a ela. Se nascemos em um ato de dor e assim também encerramos nossas vidas, qual é o problema de senti-la durante o percurso?             A bem da verdade, antes eu corria, agora eu caminho. Idade oblige, mas, com uma pitada de humor, essa mudança pode ser encarada como uma vantagem: foi caminhando e não correndo que o gênero humano fortaleceu-se e colonizou o planeta, das florestas tropicais aos polos gelados. Só muito tempo depois, tomado da nostalgia do seu lugar de origem, foi que ele começou a navegar. E possivelmente safou-se de muitas situações a nado, mas isso foi para curtíssimas distâncias.              E, dep