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PAISAGEM DA JANELA


(Imagem: www.lucianogallagher.blogspot.com)

            É uma janela de correr, em esquadria de ferro, com caixilho enferrujado e basculante torpe. Sem enfeites, apenas uma cortina de tule; a luz e a sombra que se projetam sobre o vidro transmitem a atmosfera exterior para o quarto – quente, claro, frio, escuro. Dá de frente para um robusto pé de acerola que lança galhos e frutos a esmo quando a estação é propícia.  É porto de passagem para muitos passarinhos, dentre os quais os indefectíveis pardais, as elegantes rolinhas, os frágeis colibris e algumas intrépidas cambacitas.
            Quando a Sra. Mieko chegou, os passarinhos já tinham se recolhido em meio à densa folhagem de uma árvore mais alta. Ainda restavam migalhas sob o pé de acerola, nacos de pão e grãos de milho que costumo lançar para saciá-los no repasto da tarde.
            - Olá, sou Mieko.
            - Sente-se, por favor. Minha filha já vai chegar.
            - Quantos anos ela tem?
            - Doze, eu acho.
            - O Senhor não sabe a idade da própria filha?
            - Às vezes, esqueço, parece que já tem quatorze anos. Tem ares de moça.
            - Meu cartão...
            - Senhora “Mieko, musicista”, obrigado.
            Durante a aula de canto, recolhe-me como os passarinhos, observando através da janela aberta as luzes noturnas que, pouco a pouco, vão se misturando ao silêncio. A música lírica virá espantar os últimos visitantes indesejáveis.

            De manhã, a brisa fresca passa pelo vão central e vem esfregar-me o rosto. Ouço a algazarra dos passarinhos, mais pontuais do que o meu despertador. Os penosos espalham-se pelo chão e refestelam-se com ticos de nada, crosta dura de pão, banana passada e restos de milho que não foram devorados pelo coelho. Tudo convertido no mais nobre banquete que se pode comer neste mundo, com os mais bisonhos dos modos, bicadas aleatórias, ciscadas de patas espalmadas, chacoalhar de penas e agitar de caudas.  De repente, um clamor coletivo: os vigias dão o sinal e eles partem em busca de outra paragem.
Assim como eu, que devo partir na direção do dia.
            Se a lua é cheia, minguante ou meia, passa rente ao telhado e lança raios fugidios sobre a vidraça. Afasto o tule, deixo-me seduzir. Leitoso e cálido, lá está o pedaço de queijo pendurado no céu. Miro, admiro feito um lunático.  Vou buscar uma taça de vinho para enquadrar melhor essa imagem de filme noir. As pegadas do dia, fortemente impressas na memória remanescente do trabalho, vão ficando para trás. Caminho por uma trilha de estrelas, visito astros nunca dantes explorados. O buquê tânico e ligeiramente ácido do vinho me transporta para a imensidão do céu, onde as Três Marias piscam como isqueirinhos bics... 
            - Pai!
            - O quê?
            - A professora de canto não pode mais vir. Ela vai partir de volta ao Japão.
            - Há de haver outra, não? A senhora Mieko tem de fato um sotaque...
            - Não faz nenhuma diferença. Técnica vocal não tem nada a ver com o idioma!
            - Por que você não experimenta cantar em tupi-guarani?
            As manhãs estão quentes, as tardes idem, as noites um torpor. Parece que outubro se esqueceu que é o mês das chuvas que matam a sede do campo e fazem florir a primavera. Sinto falta da sinfonia da natureza, das rajadas de vento sacudindo a janela e assoviando no corredor. São os dias mais felizes do ano, exatamente quando no céu as trovoadas anunciam as tempestades e os passarinhos fogem para a copa das árvores altas em busca de proteção. Os pingos densos, grossos como cordas, atingem a parede, o piso encimentado, as telhas e o vidro por trás do tule. O spray de água açoita a gentil morada, a enxurrada corre para o ralo, raios descem tortuosos e precipitam-se entre os picos das montanhas em frente.
No entanto, agora o ar está seco como um deserto.
            Devo recitar Nam myoho renge kyo. Todos devemos recitar mantras, ave-marias, bater tambores, dançar a dança da chuva. Esquecer nossa vã civilidade. Até que as nuvens se convertam ao habitual negro carregado, até que a água jorre com intensidade sobre a casa, sobre a cidade, sobre o país, até que a janela de esquadria de ferro, caixilho enferrujado e basculante torpe veja-se fechada para que o quarto não se molhe.
 Esperando a chuva, não arredarei pé daqui.

©
Abrão Brito Lacerda
09 03 18

Comentários

  1. ah;;num acredito..1/2 hora a digitar umas palavras e não salvou uma...

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  2. Achei o texto muito romântico agora que o li no blog. Mas a descrição e o enquadramento estão bons.

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  3. Uma melancolia acridoce, se é possível definir assim sua combinação perfeita de palavras e sentimentos.
    Gosto de textos assim. Transportam para o primeiro livre que li no colegial: Clarissa, de Érico Veríssimo.

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