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SESSENTA ANOS



            Muita gente já passou por isso antes de mim, não tenho do que reclamar. Você conquista enfim a maioridade e pode gozar do privilégio do caixa especial e da mente tranquila. Aos 60 anos, você não precisa provar mais nada, a não ser que dá conta de subir aquela escada de 50 degraus ou tocar a ponta dos dedos dos pés sem ficar torto como um anzol. Nada que se compare ao vexame de ser barrado na entrada por suspeita de que ainda não completou a idade legal: te pedem um documento de identidade, tal qual o guarda rodoviário, conferem a data de nascimento, olham bem na sua cara para conferir se não é carteira falsa, fazem mentalmente as contas e concluem que você pode REALMENTE passar na frente dos demais. Um amigo me disse, não sem uma ponta de ironia, que a adolescência termina aos 60 anos. Estou propenso a discordar dele.
            Ainda que alguns fatos da minha vida recente provem que a maturidade nos faz muito bem e até nos dá ares de sábios. Por exemplo, confesso em avant-première que minha verdadeira data de nascimento é 9 de fevereiro e não 9 de maio, conforme consta do meu registro e, consequentemente, de todos os demais documentos. Contudo, é em 9 de maio que recebo os parabéns, inclusive dos meus próprios irmãos, que já aceitaram como verdade o fato de eu ser um taurino cabeça-dura e conservador.
            Os nascidos em fevereiro, quanta diferença! São mutantes, criativos e rebeldes. Parece que a maioria dos palhaços nasceu em fevereiro, exceto o presidente eleito. Na ocorrência desse grave erro natalício, os hippies, veganos, trapezistas, músicos e dançarinas do ventre que compõem a legião de aquarianos, poriam fogo no Congresso  e decretariam a revolução do zodíaco. Com tal espírito, abandono de vez a seriedade taurina que carreguei falsamente durante décadas e assumo de pleno direito a irresponsabilidade aquariana.
            Meu amigo adora me contradizer. Ao lhe confiar meus pensamentos, disse-me que agora que cheguei aos 60, posso muito bem abrir mão de 3 meses. Isso é sabedoria, ele insistiu. Eu me contento em subir as escadas sem que me doam os joelhos e a coluna cervical, costal e lombar. Ele, por outro lado, gosta de se gabar que “aquilo” ainda funciona muito bem. Podem-se ouvir seus relatos de matusalém no harém da Guaicurus, fazendo canguru perneta e sonda de prospecção de petróleo, mas suas amantes são todas pagas. Outro nome para “aquilo” é Viagra e, a propósito, vou contar-lhes a história do velhinho que deu três e caiu morto: Cansado de retirar teias de aranha da janela, o velhinho tomou dois Viagras e foi pra zona farrear. Esqueceu até a bengala em casa. Quando chegou a vez de subir a escada que dava acesso às alcovas, deu três passos e caiu morto.
            Confessar a velhidade por antecipação é a maior prova da minha vontade de regenerar. Numa época dominada pelas Fake News, é digno de nota alguém atacar o mal em seu nascimento. Já me vejo ocupando os assentos da frente nos transportes públicos, sendo ajudado pelas mocinhas de terno azul-marinho, sapatos de verniz e meias Kendall - Água mineral? Pois não. Que tal um cafezinho? Reivindicarei de bom grado descontos de 70% em voos internacionais - unam-se a mim os sexagenários! Virarei as maçanetas das portas com mão trêmula, exibirei belos tufos de cabelos brancos sobre a fronte, escreverei crônicas para milhões de leitores e, antes que dama da caveira e da foice me espreite num passo em falso, conquistarei de vez a eterna juventude.
©
Abrão Brito Lacerda
15 12 18
           

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