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SOL NO CORAÇÃO

       

Kikuko tocando Koto (harpa japonesa), em 1973, ano de sua partida para o Brasil.

            O contraste entre luz e sombra, fundamental nas artes plásticas, oferece um notável meio de observação sobre a natureza da existência. Sabe-se que a luz é mais clara e a sombra é mais escura na proximidade do ponto em que se tocam no ângulo. Posicionadas lado a lado, uma ajuda a definir a outra, como seu contrário e seu complemento.

            Na filosofia budista, a luz (sol) e a escuridão (noite) são frequentemente usadas como metáforas dos estados fundamentais do ser. Assim, o termo “escuridão fundamental” designa o oposto da iluminação ou sabedoria búdica). Contrárias mas não excludentes, ao contrário, nerentes e inseparáveis, o que equivale dizer que não existe sabedoria sem ignorância e vice-versa. A prática budista visa, de um ponto de vista prático, ativar os fatores que favorecem a sabedoria e  conduzem ao sucesso (realização dos objetivos) e à felicidade. O sujeito pode determinar o curso dos eventos que afetam sua vida, com uma ação transformadora, que tem como base verdades universais (que representam a verdadeira Lei ou "verdadeira natureza de todos os fenômenos").  

            Esse é o caminho para a felicidade, aberto a todos. No entanto, são poucos os que conseguem percorrê-lo - o que nos leva a perguntar: 

             O que essas pessoas têm de especial?

             A resposta é: o sol no coração e um rosto resplandecente de entusiasmo e energia juvenil.

            Como a senhora Kikuko Inoue, por exemplo, uma japonesinha de olhos vivos e sorriso de flor de cerejeira, que tem consagrado a vida a um ideal:  

            - Estou viva graças a minha missão - costuma dizer. 

            Uma missão que se revelou por ocasião de um encontro determinante: em maio de 1960, quando ainda era estudante, foi à posse do novo líder da Soka Gakkai, Daisaku Ikeda, que assumia como terceiro presidente. Tinha feito a viagem entre Totori, na costa oeste, e Tóquio, na costa leste, sem muito entusiasmo e se sentia perdida na multidão. No entanto, ao tomar conhecimento da trajetória do jovem pobre e doente, que havia superado as condições adversas do pós-guerra para se projetar como novo líder, irradiando alegria e esperança, sentiu-se profundamente tocada. Compreendeu intimamente o princípio segundo o qual toda pessoa possui um potencial ilimitado e é capaz de realizar seus sonhos, independentemente das condições externas.

            E qual era o sonho da jovem Kikuko? Consistia em difundir no estrangeiro a filosofia da paz e da compreensão, através das artes  que formavam parte de sua refinada educação: ikebana (técnica de arranjos florais), caligrafia, música (Koto, espécie de harpa japonesa), sumie (pintura), desenho, além da preparação e execução da cerimônia do chá.

            Mas tinha um porém: sua saúde era frágil e pairavam sérias dúvidas sobre suas condições. Seria ela capaz de ter filhos? Conseguiria trabalhar? Poderia cumprir os desígnios de pai, que gostaria de ver as filhas dedicar-se ao trabalho pedagógico de difundir as artes e promover a paz?

            Quando, em 1971, seu pai, o professor Kiyoharu Ota, de nome artístico Tikufu Ota, criou a fundação Tikufukai com esse objetivo, Kikuko sentiu que sua hora estava chegando.

            A Kikufukai incorpora o princípio da educação como criação de valores, caro ao professor Tsunessaburu Makiguti, que propunha uma escola lúdica, voltada para o aluno. Colocada no centro da experiência pedagógica, a arte transcende seu valor estético e adquire uma dimensão espiritual e social, muito bem representada nas palavras do seu fundador: “O amor pelas flores leva ao amor pelas pessoas e, consequentemente, à paz no mundo”.

            Kikuko estava casada e com três filhas pequenas. Seu marido, o metalúrgico Kenji Inoue, nutria o mesmo desejo de se mudar para o exterior. Quando, ao longo de uma reunião no ano de 1972, perguntou-se quem gostaria de trabalhar fora do país, os dois foram os primeiros a levantar as mãos.  Em seguida, inscreveram-se no programa de emigração do governo japonês e começaram a se preparar para a grande aventura da expatriação - o que significava vir para o Brasil, pois este era o único país que aceitava imigrantes japoneses na época!

            E foi assim que aportaram em Belém do Pará no ano de 1973, com destino a uma plantação de pimenta do reino no município de Tomé Açu!

            O que uma artista e um metalúrgico tinham ido fazer ali?

            Juntar-se a outros imigrantes japoneses, que deveriam, pelo período de três anos, dedicar-se à agricultura em um local designado pelo governo brasileiro, conforme previa o acordo de imigração.

Imigrantes japoneses na Amazônia, em 1974.

            Não tardaram a sentir a dureza da nova realidade: o clima inóspito, completamente diferente das quatro estações bem definidas de seu país de origem; o regime alimentar representado por produtos e técnicas culinárias desconhecidas; a escolarização das filhas; a completa falta de experiência com relação ao trabalho na agricultura; sem falar da ignorância em matéria de português, dos hábitos e dos costumes locais.

            Mas a prova mais dura ainda estava por vir: pouco tempo depois da instalação em nosso país, Kikuko foi diagnosticada com câncer em estágio avançado.  Pâncreas, estômago e outros órgãos estavam comprometidos. Os médicos disseram que, do ponto de vista da ciência, ela só possuía um por cento de chance de sobreviver (o que equivalia a dizer que estava desenganada). Vieram as cirurgias: foi-se seu querido estômago. Ela teria que aprender a viver sem.

            A perspectiva de deixar três filhas pequenas e selar seu destino de forma precoce fê-la redobrar suas convicções espirituais. E contou com o zelo redobrado do companheiro, que tampouco queria perdê-la.

            E o veneno se transformou em remédio, fazendo cumprir o que está escrito nos sutras: que nenhum obstáculo (nem mesmo a morte) é intransponível para quem se dedica à nobre tarefa de servir à humanidade.

            Três anos depois, livres da obrigação compulsória do contrato de imigração, mudaram-se para Ipatinga, em Minas Gerais, onde seu Kenji foi admitido como metalúrgico, na siderúrgica Usiminas.

            E ali encontraram o meio propício, facilitado pela presença de outros compatriotas. Um ano depois da chegada ao Vale do Aço (1977), lançaram raízes definitivas em nossa terra, inaugurando o Centro Cultural Tikufukai do Brasil e dando início ao projeto educativo e cultura a que estavam destinados. Milhares de estudantes de todas as idades passariam pelos ateliês de ikebana, origami, cerâmica e culinária japonesa, entre outros, estreitando os laços entre nossa nação e o país do sol nascente.

            As filhas cresceram e integraram-se naturalmente ao projeto (mais tarde, a primogênita retornou ao Japão). Os netos chegaram e uma geração de nisseis prepara-se para dar continuidade ao nobre trabalho familiar, iluminados pela luz que irradia do coração da matriarca.

            Uma luz tranquila e compassiva, simples como os gestos que dispensam de palavras, refrescante como o orvalho da manhã, e ao mesmo tempo profunda como a energia que flui desde o tempo sem início.

            Agora que seu fiel companheiro de jornada, o seu Kenji Inoue, despediu-se de sua trajetória terrena, caberá à Dona Kikuko escrever o epílogo de sua vida - com pincel de seda e tinta de ouro, sobre a tela que é a alma brasileira agradecida.

            E então veremos emergir da terra a chama mística que habita o coração, que seu mestre assim plasmou em um poema de juventude:

 

Ó viajante!
De onde vens?
Para onde vais?


A lua desce
no caos da madrugada;
mas vou andando,
antes do Sol nascer,
à procura de luz.


No desejo de varrer
as trevas de minh' alma,
a grande árvore eu procuro
que nunca se abalou
na fúria da tempestade.


Neste encontro ideal,
sou eu quem
surge da Terra!

                                   Daisaku Ikeda


O autor, seu Kenji, dona Kikuko e Rose.
          

©

Abrão Brito Lacerda

09 09 22

 

 

Comentários

  1. Parabens Abrao Lacerda, belíssima apresentação da vitória de toda a vida da nossa tão querida Kikuko Inoue. Parabens!

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    1. Obrigado pela leitura e pelo comentário. Dona Kikuko é um exemplo para todos nós.

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