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COCO COM PIMENTA

 


(Traipu, AL, terra de Luiz Vieira, que me contou esta história.)

Escreveu não leu o pau comeu, no Nordeste não tem disso não.

            Na vila de Escorial, às margens do Rio São Francisco, a vida corria tranquila naqueles idos de 1960. Os únicos eventos extraordinários eram o encalhe de uma barca na rota para Piranhas e as datas do calendário católico, celebradas com pompa e fervor. Dia de São Miguel, Dia de São Pedro (o padroeiro da cidade), Festa de Bom Jesus dos Navegantes. Sobre as águas mansas do grande rio circulavam barcos, cholas (canoas de médio porte, capacidade até 300 sacos), canoas de pescadores e, sobretudo, canoas de toldo ao velho estilo, algumas capazes de transportar até 600 sacos ou 36 toneladas.  A cultura ribeirinha aflorava nos cânticos dos condutores das balsas e nos bailes de coco, com sua mescla de música e dança. Todos se alegravam, inclusive os meninos. De modo gracioso ou perverso, como só os moleques de antigamente sabiam fazer.

            Xioli (imitação de Acioli), narrava a história do lugar a partir de dois pontos de observação privilegiados: a barbearia e a delegacia de polícia, pois ele era ao mesmo tempo barbeiro e delegado. Tanto fazia quanto deixava de fazer: se era para cuidar do transporte de um enfermo ou caçar um ladrão, agia com presteza; mas, se era um “causo” particular, como rusga de família ou tema de religião, preferia não se meter. Ultimamente chegavam a seus ouvidos queixas sobre a intromissão de missões evangélicas na paróquia, introduzindo práticas e modos diferentes e ameaçando as tradições locais. Como sempre, Xioli preferiu fazer vista grossa, mesmo porque os pastores pagavam o transporte nas canoas, como todo mundo, e ficavam em pensões, que tampouco eram de graça. 

            Talvez tenha subestimado o poder dos pregadores, pois, em pouco tempo, o rebanho divergente cresceu. Cenas de batismo de imersão às margens do grande rio começaram a se tornar comuns nos domingos de manhã. No meio das carrancas que adornavam as proas dos barcos (com suas caretas e dentes ameaçadores), mergulhavam e emergiam os novos convertidos, como garças desengonçadas, com suas túnicas brancas açoitadas pela corrente.

            Na véspera da festa do padroeiro, não era bom sinal e o fermento da rebelião popular crescia no zunzum da feira e dos salões de coco. Falava-se da necessidade de expulsar os invasores e aplicar-lhes uma sova corretiva e duradoura. O único emperro era o delegado. Xioli alegou estar muito ocupado com a preparação do grande evento anual, que teria quermesse, leilão e a tradicional corrida de canoas pelo rio, além das apresentações dos ternos de cocos, de casa em casa.

            A noite do grande dia foi especialmente agitada, com ataques severos dos moleques sabotares.   

            O passatempo predileto da prole miúda daquele lugar com pouco o que fazer era misturar-se aos foliões e salpicar sorrateiramente o chão de terra batida com pimentas malaguetas, as quais, após serem pisoteadas, convertiam-se em verdadeiras bombas químicas, capazes de provocar espirro, tosse e lacrimejamento.  E o que era pior: após ser atacado, um salão de dança precisava ser evacuado e cuidadosamente varrido e descontaminado, o que não era tarefa fácil naquela urbe onde muitas casas eram iluminadas por candeeiros.

            Os adultos não sabiam, mas os moleques competiam entre si para ver quem seria o maior sabotador do ano. Preparavam-se com antecedência, como para uma guerra, e traçavam um plano organizado de ataque. Identificavam os quintais com as melhores cepas de pimentas-bombas, sorteavam os alvos de ataque (no par ou ímpar) e partiam munidos de sorrisos sardônicos e bolsos cheios de artefatos de guerra. No dia seguinte, reuniam-se na beira do rio para o banho coletivo e a avaliação dos resultados e faziam uma algazarra de se escutar da praça da igreja.

            Xioli foi acionado várias vezes para dar cobro da molecagem, mas, sempre que chegava a uma casa que tinha sido atacada, os responsáveis  já tinham desaparecido. E, se ele abordasse por engano o filho de alguma mãe ou algum pai que estivesse por perto, criava-se uma rusga que podia ser resolvida na faca se nenhum conhecido ou deixa-disso entrasse para apartar. O povo do sertão era terrível, tinha pouca tolerância para com o erro e tomava simples mazelas como crimes de honra. Os moleques eram herdeiros dessa índole perversa. E o senhor delegado, que nessas horas desejava ser um simples barbeiro, sofria as consequências de ter que por ordem em um lugar que não tinha destacamento policial e punia qualquer gesto de fraqueza com o epíteto terrível de “frouxo”.

                                                           (Traipu, Alagoas)

            Enquanto os moleques mofavam à tripa forra dos adultos nas barrancas do rio, em meio a gritos insolentes, saltos mortais e disputas de canga, pais, mães e autoridades se reuniam na barbearia/delegacia para discutir providências. Muitos tinham cara de convalescentes de um ataque químico, outros pareciam ter dormido pouco à noite, o que aumentava o desejo de vingança. Mas as providências exigidas logo se concentraram nos missionários da nova fé, que tinham tido a cachimônia de marcar um batismo coletivo nas águas sagradas do Rio São Francisco logo depois da festa do padroeiro!  Foi decidido que um destacamento policial viria de Guararu para ficar sob o comandado do “senhor delegado”, o qual aceitou a incumbência e prometeu honrá-la sem falta.  O objetivo seria espreitar os evangélicos durante o ato e dar-lhes a devida correção.

            O reforço policial chegou de manhã - mas não desceu em terra, ficou ao largo, na outra margem do rio, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Ao contrário dos missionários, que chegaram acenando de cima da canoa, desceram com seus ternos brancos e suas bíblias e puseram imediatamente mãos à obra. Havia até mesmo noviços da zona rural, o que atestava o fervor e a resolução dos pregadores. Deram início aos trabalhos de consagração, com a característica imersão dos novos crentes, trajados de túnicas imaculadas que brilhavam ao sol do meio-dia. O pastor colocava uma mão na cabeça e a outra no ombro do batizando, proferia as palavras do evangelho e então o mergulhava, demonstrando grande perícia.

            Então, a barcaça que estava ancorada do outro lado do rio começou a se aproximar, abordando a presa com um bando de piratas, dissimuladamente no início e depois furiosamente. Sem que os crentes entendessem o que estava se passando, os policiais saltaram dentro da água rasa, armados de cassetetes e rabos de galo (antigos punhais, longos e finos, usados pela polícia antes da introdução das armas de fogo) e deram a carga. Os pastores, por dever de ofício, tentaram resistir com a força da palavra e levaram a pior. O delegado ordenou que fossem submetidos ao vexame público antes de serem levados para a delegacia de Guararu.

            O vexame significava que cada detento deveria realizar a penitência de transportar água do rio até o templo católico, usando para isso uma lata de querosene de 20 litros, despejá-la na porta da igreja e ajoelhar, prestando subserviência à única fé tolerada naquela localidade. Os prisioneiros amotinaram em nome dos dez mandamentos de Lutero, mas, ao verem a revolta da multidão, mal contida por Xioli e seus homens, temeram pelo pior e se resignaram a cumprir o calvário.

            Sob o sol impiedoso da tarde, enchiam suas latas d’água, arremetiam contra o barranco e cambaleavam rua acima em direção à praça. Se deixassem cair uma gota, levavam tacadas (dolorosíssimas, disseram) de rabos de galo. Para aumentar o suplício, quando estavam perto de ganhar a praça os policiais que os escoltavam puxavam a corda amarrada ao pé de cada um e os deitavam ao chão. Ganhavam sova extra (para deixarem de ser moles) e tinham que voltar ao rio para recomeçar o trabalho. Quando os policiais se distraíam, aparecia algum moleque para dar o puxão fatal.

            Os prisioneiros foram despachados para Guararu no final do dia, quando começaram a dar sinais de exaustão. Tiveram direito a um banho e a uma refeição, para que não chegassem ao destino acabados. Sem que reclamassem, suas bíblias foram devolvidas, pois se tratava de uma tradução diferente e seria um ato apócrifo usá-las no ritual católico. Foi um consolo nada desprezível. Tomaram o livro sagrado entre as mãos e puseram-se a lê-lo com fervor, buscando explicação para tamanha provação nos trabalhos de Jó e no juramento de Abraão. Até o destino incerto da delegacia de Guararu, seria uma longa viagem pelas águas turvas do São Francisco.

 

©

Abrão Brito Lacerda

21 10 18

           

 

 

 

 

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