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MORTE E VIDA DE LUIZ VIEIRA

 

Lúcia, Luiz, Rose e eu.

            Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres, escreveu Manuel Bandeira em um dos seus últimos poemas. O bardo teve um longo tempo para se preparar, após confrontar o fim com tenros dezessete anos de idade. Por isso é bom nos prevenirmos, o fim virá com ou sem motivo.

            Para a maioria, morte é fato inédito, tristeza, esquecimento, solidão, vazio de coração raso e mente enrijecida pelo materialismo. No entanto, não era para ser assim.

            Tão certa quanto o dia e a noite, deveríamos enfrentá-la sem comoções e até mesmo saudá-la como o poeta, por que não, sem mágoas, compreendendo que se trata apenas da passagem para outro nível, no qual a noção do tempo se desfaz.

            Está no Eclesíastes: para tudo há um momento debaixo dos céus, tempo para nascer e tempo para morrer. Está na tradição budista, para a qual os fenômenos são dominados pela impermanência e vida e morte são inerentes e complementares, duas faces da mesma moeda.

Até mesmo nosso magnífico planeta azul, com sua mágica bolha de oxigênio, até mesmo o universo, fluindo, quem sabe, na direção de um novo big bang.

Tudo nasce e morre, morre e renasce.

            Desfeitos os laços que ligam o ser ao mundo material, para onde vai a centelha do espírito ou alma? Retorna à origem, funde-se de novo ao universo, ao princípio, de onde rebrotará. Cada morte individual constitui uma metáfora da morte do universo. E do seu renascimento.

            O grande abismo está na vaidade de que nos fala o Eclesíastes, no apego do qual o Budismo tenta nos libertar. Desprovidos de apego e vaidade, podemos celebrar a morte como o encontro aspirado por aqueles que não levaram uma existência em vão. Os que partiram como viveram, serenos e confiantes, rumo à grande viagem.  

            Foi assim que faleceu meu amigo Luiz dos Santos Vieira Marques, um homem de muitas qualidades e vasto currículo, que eu não sou o mais indicado para avaliar. No entanto, como alguém que gozou de sua companhia nos últimos seis anos e compartilhou com ele pensamentos profundos - que nos levaram a uma forte simpatia mútua -, tenho minha palavra a dar.  

            Éramos ambos nordestinos, eu da Bahia, ele, de Alagoas, de gerações e experiências passadas, falávamos a um mundo novo que nos ouvia como ecos do passado. História, filosofia, literatura, religião, política, reviramos o mundo de cabeça para baixo. Luiz era de uma rara cultura, sua biblioteca (que, certamente, será mantida pelos herdeiros) era em si uma viagem, tal qual a mente do proprietário. Uma mente inquieta, incansável, sempre em busca do justo, do bom e do compassivo em cada coisa.

            Nas dobras da existência existem essas frestas por onde a luz entra. Luiz era natural de Traipu, uma cidadezinha bucólica situada às margens do Rio São Francisco. Sua infância se passou ao ritmo das barcas de transporte de carga e passageiros ao longo do rio. Ele tinha mil histórias pra contar a respeito, eu tive o prazer de ouvir algumas delas. O estilo rígido e muitas vezes ríspido do nordeste o marcou muito. Mas ele o via com bom humor, enfatizando muito mais seus aspectos estereotipados e folclóricos do que sua violência machista inerente. Certamente, um ambiente de compreensão em casa o ajudou a não criar rejeição a esses valores tão contrários a sua personalidade.

            Na adolescência, foi destinado ao seminário. Há que se compreender que o seminário era uma ótima opção de estudos naquela época, oferecendo uma formação humanística muito superior aos demais colégios. Não significava necessariamente ter vocação para padre. O que veio mais tarde a se confirmar. Há muitas coisas que fazem alguém dizer não em uma hora dessas, Luiz, entre outras, queria se casar, ter filhos, celibato não era para ele.

            Foi uma mudança suave, pois ele só guardou boas lembranças do seminário, dos colegas, dos professores, das aventuras entre Alagoas e Minas Gerais, estado para onde se mudou em seguida. Era a época da ditadura militar e da organização da resistência política à repressão, boa parte dela fomentada pela igreja católica. E ele acabou dentro, servindo de elo entre células da Ação Popular na região metropolitana de Belo Horizonte. Recados passados boca a boca, bilhetinhos entregues dentro de livros, tudo se fazia em segredo e de forma fragmentada. Afinal, havia sempre o risco de alguém ser preso.

            A constituição de uma vida secular posterior não o afastou do objetivo espiritual que perseguiu ao longo de toda a vida. Este talvez seja o traço mais marcante de sua personalidade. Suas inquietações espirituais o levaram a beber de várias fontes, a cotejar um filósofo católico e um monge budista com a mesma equidistância.

            Pedi várias vezes a Luiz que escrevesse. Só nós mesmos podemos contar nossa história, os demais, apenas versões, eu lhe dizia. Ele nutria pretensões no campo do direito, profissão a que se dedicou na maturidade, gostava de dar palestras, certamente deixou digressões rabiscadas nas páginas de algum livro sobre filósofos da época clássica, mas nada que tenha configurado um projeto sério de registro criativo ou de memória.

            O que faz com que tenhamos que executar a arqueologia do seu legado. Eu gostaria de ter conversado mais com ele e registrado as muitas histórias que me contou para não ter que depender de minha memória infiel. Na falta de tal ferramenta, valho-me da imaginação, essa dama que só aceita os fatos pela metade, pois gosta mesmo é de inventar.

            Uma dessas histórias eu narrei na forma de ficção no conto inédito “Coco com Pimenta”, que colocarei à disposição nas páginas deste blog para os eventuais interessados. De sua última viagem à terra natal, ele me contou vários fragmentos de histórias sobre o rio e sua gente, as quais constituem um excelente material para incursões criativas.

            Seu sonho era voltar para Traipu. Não fora um Drummond divorciado da terra natal e lamentoso diante do paraíso perdido. O paraíso ainda existia para ele. Contou-me planos para estabelecer-se novamente às margens do grande Rio, rever o balanço suave das barcaças que seu pai conduzia tão bem e sentir de novo no peito enfunar as velas rio acima. Teria escrito suas memórias e inventado muitas histórias sobre o que mais amava. Não teve tempo para isso, afinal, o último ato de nossa vida não é de nossa escolha. Mas nutriu, sem dúvida, no último suspiro, a mesma compaixão pela dama de negro que levou o poeta Manuel Bandeira a plasmar em versos:

            Bem que filho do Norte

            Não sou bravo nem forte.

            Mas, como a vida amei

            Quero te amar, ó morte.

 

©

Abrão Brito Lacerda

14 10 20

 

 

 

 

 

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