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PELA CIDADE


            Receber o feedback do leitor é tudo que o autor deseja. Ainda mais de um leitor fiel, que conhece suas histórias melhor do que você, que indaga sobre os personagens, os lugares, tece liames com outros campos. Eu afirmo que tudo é ficção, tenho péssima memória, esqueço nome de pessoas, lugares, eventos, tenho que me servir da imaginação para traçar linhas e delinear histórias. Além disso, não custa acreditar que sonhar é melhor do que viver e que a arte está alguns degraus acima da realidade, algo assim como uma taça de vinho que rompe o torpor da tarde de domingo, quando você pensa no fim e no que virá depois dele - inevitavelmente, a segunda-feira.
             O leitor insiste, eu o perdoo. Está cada vez mais difícil encontrar histórias interessantes, todas já foram contadas e recontadas pelo cinema, esse narrador supremo do mundo moderno. De vez em quando alguém parece dizer o que ainda não foi dito, gera debates, mundos e fundos da mídia de merde, que vive pelo efeito da matilha – onde um cheira a bunda do outro – e constrói o discurso dos alienados. Eu os perdoo também. Estou tomado de compaixão depois que o leitor explicou que leu meu livro três vezes e ainda confunde os personagens. Especialmente aquela moça da padaria, ah, aquela rapariga decidida que tinha uma tatuagem – onde mesmo?
            Digo ao leitor que me lembro da tatuagem da moça, fui eu mesmo que a construí com palavras, mas não sei bem onde ela fica. É no pescoço, ele me diz com olhos brilhantes, a parte do corpo da mulher que mais me excita, ela tem uma tatuagem que pode ser ocultada pela gola da blusa, ou revelada, conforme a ocasião e o interesse. Rapaz, isso é excitante, a Milyne do conto “Sete para Viver” tem uma tatuagem bem na... Não é dela que estou falando, interrompe o leitor com propriedade, eu gosto mesmo é da moça da padaria, aquela do conto “Pela Cidade”. Essa história tem alguma relação com sua vida?
            Que fazer, poderia ser um crítico da tv me convidando para um debate, com bilhete de avião e hotel incluído, mas não, é o senhor leitor que está apaixonado por uma personagem de minha invenção. A contragosto, me disponho a reler a história, coisa que não me deixa muito à vontade, pois cada vez que faço isso encontro um monte de defeitos e tenho ganas de mudar. Nem o fato de estar plasmado em preto sobre branco me convence que é preciso deixar a criatura viver em paz, ter vida própria, conquistar o mundo.        É para isso que publicamos, não é mesmo?

            Procuro me manter neutro, agora que estou convertido em leitor. O Jack é um safado, não recomendo o estilo de vida dele. O quê? Não, o Jack não tem nada a ver com uma pessoa especificamente, qualquer semelhança é mera coincidência, eu inventei o Jack, tá bom? Inventei o Jack, a Luanda, namorada dele, mulher e ex, o alfaiate filósofo versado em francês que compele o narrador ao adultério sob o discurso de que não se pode amar apenas uma vez, inventei a moça da padaria, não tenho culpa se ela se parece com alguém que você conhece. Eu não conheço ninguém como ela, replica o leitor, mas bem que gostaria, ela é tão autêntica, sensual, tem porte, dignidade, definitivamente, não é uma mulher qualquer. E tem aquela tatuagem...
            No conto, é assim:
   Passei na padaria dois dias depois e notei que a garota estava mais sugestiva. Pela primeira vez, deixou entrever sob a gola da blusa uma pequena tatuagem, semelhante à que eu vira no sonho. O perfume, que fiz questão de sentir, era amadeirado, e misturava-se ao odor discreto do suor de algumas horas de trabalho. A aliança também estava lá, no dedo médio da mão direita.
  Well, Gabriel, depois:
“Fiz questão de ralear minhas passagens pela padaria. Só voltei quinze dias depois, pelas baguetes de gergelim e os bolinhos de chuva, juro. Ela me seguiu com o olhar 43. Quando cheguei ao caixa, a tatuagenzinha estava à mostra: um galho de rosa com flor e espinho. Que linda tatuagem, obrigada, gosta de música? Samba? Eu também, aqui está meu cartão, liga amanhã, saio às 8...”
Com sabor de struddle de chocolate e éclair de doce de leite, rolou um rolo aí, durou meses e acabou porque tinha que acabar, uma experiência que caiu como uma luva para os interesses da moça, sejam lá quais forem. Teve a influência dos amigos e infiéis confidentes, teve a “folie” que tomou o coração do homem de meia idade, uma reação espontânea como acontece nos melhores incidentes amorosos, sem gratuidade, sem instintos vulgares.
  Mas que é pura ficção, eu juro de pés juntos.

©
Abrão Brito Lacerda
10/07/20
 


             
           

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