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O DENTE E A DENTADURA

(Crédito imagem: vectorset)


            Ao longo dos anos, tenho feito generosas contribuições à classe dos dentistas, sobretudo os ortos, que não são ursos, são ortodontistas. Aos tenros dezesseis anos, arrancaram-se sete dentes de uma vez, incluindo os quatro da frente, deixando um espaço vazio em minha vida que muito tem me custado preencher. Sobre a impermanência de que nos ensina o budismo, experimento-a mudando de sorriso a cada dez anos. Uma imensa vantagem em relação às pessoas comuns. Devo me considerar abençoado. Thanks, Nasrudin!
            Antigamente as obturações eram feitas de metal, pretas, feias, mas resistentes. Você ficava com uma boca atleticana, preta e branca, mas o trem durava uma vida. E logo agora que a expectativa de vida se multiplicou eles passaram a usar resinas, que só podem ser made in China de tão frágeis, não aguentam osso ou pedra no feijão. Algumas não aguentam nem mesmo pão duro, que barbaridade! Os selvagens das cavernas podiam devorar a vida sem precisar de delicadeza, e a gente, em pleno século XXI, com medo de morder uma barra de chocolate.
            Assim, você se vê, precocemente, de volta à sala de radiologia, onde a atendente dá-lhe a mais nítida demonstração do poder da decisão, de graça, sem gastar um puto com autoajuda. Vire para o lado e levante a cabeça, ela diz. Você faz o melhor, como aluno aplicado, e aguarda a recompensa. Que nada, ela lhe dá um trompaço, coloca a cadeira na posição certa e manobra sua cabeça como se esta estivesse montada sobre rolimãs. Agora abra a boca para colocar o filme. Quem ousaria contrariar uma ordem dessas? Vire de costas, assim, trompaço, cabeça girada, abra a boca. Meus parabéns à classe pelo profissionalismo.
            Por que todas não são como a Dra. M, capaz de tratar um canal com um simples olhar? Mesmo usando anestesia, motor, brocas, pinça e tensor, ela torna o tratamento um passeio no parque. A agulha de sua seringa é a mais fatal que pode haver, uma picada e você fica de boca aberta. Até o desejo estúpido de que aquele canal encalacre e te faça voltar para mais duas ou três sessões se permite. Talvez seja o efeito da anestesia, seus poderes alucinógenos (meu vizinho saiu do dentista, na hora de pegar o carro o alarme não funcionou, ele arrebentou o vidro com um soco, destravou a porta, abriu o capô e neutralizou o barulho em menos de vinte segundos – estava sob o efeito da anestesia).
            Pergunto à Dra. M, que acabou de chegar de férias, se ela curtiu a praia ao lado do namorado. Namorado? ela repete como quem quer dizer “e eu tenho tempo para namorado?" Passei as férias me preparando para o congresso internacional de ortodontia. É no final do ano e as palestras serão em inglês, ela acrescenta, lançando-me dessa vez um olhar de náufraga. Mas o final do ano está aí, Dra. M, como é que a senhora vai fazer? Preciso retomar o curso de inglês o quanto antes, estou tão nervosa. Não há motivo para ficar nervosa (a sra. ainda precisa terminar meu canal).
            Essa história de congresso internacional poderá gerar reações químicas inesperadas e decretar o fim das férias celibáticas da Dra. M. E o pior é que eu estou convocado a fazer parte desse plano, sendo eu o navio que recolherá a náufraga e o transportará a terra firme. Cinco aulas por semana, eu proponho a ela, é a condição mínima para melhorar o inglês em dois meses. Ela tira a máscara, suspira, lança-me de novo aquele olhar de tratar canal sem anestesia:
            O que se há de fazer? O senhor é o professor.

©
Abrão Brito Lacerda
26 11 19

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