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KNIFE EDGE


 
(Foto: Estado de Minas)
            Fim de ano é tempo de confraternização e festas, mas também de viagens e tragédias, numa redundante causa mortis que suscita perguntas aos bem-pensantes. Do tipo: quando é que as pessoas vão perceber que a violência no trânsito é um reflexo direto de sua forma de agir ao volante?
            Algo tão óbvio, já cheguei a me debruçar sobre o tema ao fim de mais uma viagem pelas estradas de Minas Gerais na crônica (injustamente) pouco lida que se intitulava sarcasticamente “Morrer!” (aqui neste blog). Tratei com ironia essa busca pelo caminho mais curto para debaixo dos sete palmos de terra de parte de alguns motoristas. Saudei o progresso sinistro que faz alguém enfiar uma moto debaixo de um caminhão e morrer em fração de segundo.
            Os suicidas não têm mais desculpas para fracassar em seus planos.
            Minha intenção era defender a vida, que anda muitas vezes por um fio em nossas estradas, especialmente para quem é do Vale do Aço como eu e não tem outra saída senão pegar a torturante e falecível BR 381, seja em direção a Valadares, seja para Belo Horizonte. Você sabe quando a viagem começa, mas não sabe quando termina. Pode chegar ao destino quatro, cinco ou mesmo dezessete horas depois, como aconteceu em minha última viagem, com direito a estrada bloqueada e engarrafamento monstro noite adentro.


            Conto aqui os passos do meu calvário para percorrer esse trecho de 200 quilômetros que liga BH a Timóteo, o qual, como vocês sabem ou deveriam saber, está em obra de duplicação há um tempão. Os trabalhos avançam devagar e do mesmo modo a circulação, em função dos desvios, quebra-molas e barreiras que se espalham pelo caminho.  Uma carreta bitrem, com nove eixos e quase trinta metros de comprimento, leva uma eternidade pra passar e, pra complicar, os apressadinhos tentam furar a fila passando pelo acostamento e o resultado são duas filas que estrangulam o trânsito.  Esta é a razão de todos os estrangulamentos.
            Você está em Ravena, quinze quilômetros antes do trevo de Caeté, onde começam as obras, e o engarrafamento já diz presente. Sem querer você se vê metido entre duas filas de veículos que serpenteiam pelas encostas e baixadas em busca de uma saída. Uma verdadeira lei da selva se instala, onde carros, ônibus, caminhões e motos se espremem ao longo da rodovia. Uma orgia de desperdício de tempo, combustível e até mesmo de vidas.
            Que é o tema deste texto.
            Sobrevivi aos trampos da primeira metade da viagem, chegando em Monlevade quatro horas e meia depois. Sentindo-me feliz contudo, por poder fazer um lanche, relaxar e seguir viagem, agora de noite. Dirigir bem tranquilo, era o que eu pensava, seguir de perto alguém que esteja rodando na mesma velocidade que eu (como sempre faço quando dirijo à noite) e não desviar os olhos da pista por nada, pois as faixas de demarcação são precárias ou inexistentes.
            Ao voltar pra estrada, notei que não era bem assim. Mesmo de noite e com tanto perigo, alguns insensatos querem dirigir em alta velocidade, o que os leva a pressionar outros motoristas e a fazer ultrapassagens arriscadas. Há entre eles quem se sinta protegido pela armadura do carro e comece a fazer manobras audaciosas, na vontade delirante de compensar o atraso. Você precisa deixá-los passar, ainda que seja no meio de uma curva fechada, para poupar a própria vida. A cada um que desaparece na escuridão com seus faróis assassinos você pensa “é um louco de menos em minha vida”.

Quiet Nova Era by Night.

            Antes de chegar a Nova Era, o trânsito parou novamente. E parou pra valer, com os mal-educados tentando passar pela direita e formando uma fila dupla que avançava mais devagar que as obras da rodovia. Nessa hora, muita gente sai do carro, começa a conversar com quem está próximo. Foi o que eu fiz.  O rapaz que vinha atrás de mim mostrou no aplicativo: acidente antes de Antônio Dias, trinta quilômetros à frente, estrada fechada nos dois sentidos.  Pensei: o que fazer?
            Enquanto descíamos em direção a Nova Era em velocidade negativa (mais tempo parado do que andando) eu matutava uma saída para a situação. Quando nos aproximamos da cidade, tagarelei com um morador que estava na beira da estrada assistindo à romaria de carros (mais interessante àquela hora do que o jornal) e conclui que a melhor opção era tomar a saída á direita para entrar em Nova Era. E foi o que fiz.  Chegando lá, procurei um hotel, depois um segundo e um terceiro. Todos ocupados, afinal eu não era o primeiro exilado da 381 a ir dar naquelas bandas. 
            Formaram-se grupos de perdidos dentro da cidade, discutindo a situação e como sair dela. Eu decidi que iria dormir dentro do carro e aguardar o dia clarear para seguir para Timóteo, pois estava sozinho. Quem tinha família decidiu enfrentar a estrada vicinal para São José do Amparo, na esperança de encontrar acomodação – o que os obrigaria a voltar no dia seguinte a Nova Era para retomar a viagem.  Outros entenderam que voltar à estrada era a melhor escolha.
            Desejei boa sorte a todos e decidi esticar minha noitada curtindo Nova Era by Night.
            Não tenho muito que falar, sobretudo porque era de noite. Com duas voltas de carro na cidade aprendi que em Nova Era a gente circula entre duas pontes que ligam as duas margens do rio. Dos dois lados, os morros, o que produz um interessante efeito acústico. Nova Era é uma cidade que se ouve em qualquer ladeira que você esteja. Comecei a ouvir música e fui buscar a origem do som: era uma banda que tocava no meio da rua. Uma banda de banda, muito ruim, apesar do esforço na escolha do repertório. Violão, voz, guitarra, washboard. O guitarrista se metia a fazer solos, o violonista se achava um cantor.  Mas eles animaram a mim e alguns moradores que se perguntavam quem era eu e o que estava fazendo ali. Sou exilado da BR 381, expliquei. A coisa tá assim desde as dez horas da manhã, eles me informaram.


            Quem tem boca sabe de tudo no interior, ainda mais diante da tragédia, que faz as línguas coçarem pra falar. Fiquei sabendo que o acidente foi provocado por um morador da cidade que se chochou contra uma carreta-tanque quando estava voltando para casa. Que tristeza, me disseram, hoje é o aniversário da noiva dele. Morrer deixando uma noiva em prantos, perto de casa, em uma estrada que se conhece como a palma da mão é de lascar. Ora, ninguém vai parar debaixo de uma carreta andando devagar, ainda mais de dia e em um local que oferece condições de visibilidade e próximo a um radar de 50 km/h.
            Às cinco da manhã, estiquei as canelas (tinha tentado dormir com as pernas dobradas), lavei o rosto com água mineral e todo o luxo possível e tomei o chá que tinha reservado na garrafa para tal fim.
            De volta à estrada mais uma vez, ainda tive que enfrentar uma retenção até passar o local do acidente, onde os escombros da carreta e do carro incendiados ainda fumegavam às primeiras luzes da manhã. Desejei que a visão de um espetáculo tão dantesco trouxesse calma e bom senso aos que circulavam por aquela estrada, de modo que todos pudessem chegar em paz a seus destinos.
            Minha ilusão durou enquanto o trânsito estava controlado e lento. Assim que se viram em pista liberada, os suicidas em potencial lançaram-se á frente no ritual costumeiro de falta de educação e respeito. O que se há de fazer?
            Pluguei meu punk matinal e dirigi como um monge até chegar em casa, dezessete horas depois de ter saído de Belo Horizonte. Boas festas e feliz ano vivo a todos os que me leem ou me ignoram.
©
Abrão Brito Lacerda
25 12 19

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