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TOLICES?


Por Josefina Murta*

            Li as 15 histórias da obra bem humorada “O Amor e Outras Tolices” pausadamente, degustando-a – como a ilustração convidativa da capa sugere e também porque leio 3 a 4 livros ao mesmo tempo.
            Abrão Brito Lacerda, o autor, conheci-o nos idos de 83, na moradia estudantil de BH onde habitávamos e vivenciamos a cidade, o amor e os sonhos anarquistas da juventude de então. Abrão, baiano de Itarantim, historiador, professor, tradutor, blogueiro e escritor me surpreendeu com suas traquinagens linguísticas, remetendo-me à década de 80 como num turbilhão. Vieram-me imagens de lugares da capital mineira que jaziam engavetados na memória, como o Bar do Lulu, a antiga Fafich no bairro Santo Antônio, o Cine Pathé, as moradias ocupadas pelos estudantes e “becos” (moradores sem vínculo com a academia), chamadas de Mofuce e Borges, onde tudo era permitido e onde exercitávamos rupturas com a ordem estabelecida da mineiridade tradicional e conservadora de então. Embalados pela abertura política, pelo final da ditadura militar, pelo sexo permitido, drogas nem sempre de qualidade e rock and roll. Confesso que, ingenuamente e anarquisadamente, construímos muito (creche, moradias, espetáculos artísticos, vínculos afetivos e sexuais de todas as cores, quantidades e orientações...). Percebo enlevada que tantos de nós transitamos no presente ainda com a impiedade característica daquele passado onde nos permitimos demolir crenças, valores, condutas e sensos comuns que não mais tinham sentido na construção da nova sociedade e humanidade que desejávamos.
           
Ilusão ou não, o amor permeava tudo, como nas tramas dessas histórias, construídas divertidamente para despertar risadas, reflexões e memórias. Isso tudo entrelaçado propicia o prazer inesgotável da literatura, do encontro entre autor, leitor, personagens e lugares, sentido maior de uma obra como esta. Como na página 105, em Bom Ar, em que o personagem Jonas questiona o famoso “criar raízes” e nos faz desejar viajar e conhecer outros ares, fora de nós mesmos.
            Como na página 87, onde o bom Deus pode ser um Deusdará ou um Gasparzinho que salva o personagem profano, que só não morre de sustos e assombros “graças a Deus”. E mais, na página 52, no conto intitulado “Os Octogésimos” em que a velhice e o amor dividido são desfrutados por duas amigas serelepes e assanhadas, numa história que nos contagia e nos faz perceber que quando também chegarmos lá, poderemos, sim, existir com alegria e dançar e usar o Viagra para garantir a orgia hilariante do amor.
            Ao findar a leitura, já meio embriagada com duas taças de vinho chileno “Travessia”, sinto que, existencialmente, socialmente e filosoficamente transitei por tempos que se repetem ainda na minha trajetória de vida e sugiro, sem maiores pretensões que quem tenha o prazer de ler estes textos se permita também traquinar em suas vivências reais. Afinal, a imaginação é a possibilidade em aberto de criarmos uma vida mais real, vigorosa e alegre - Axé, Abrão!

                                                           Paraty, 4 de novembro de 2019

* Josefina Murta é formada em filosofia e psicologia e exerce variados ofícios como professora de yoga, pesquisadora nômade, terapeuta e escritora, com 8 livros publicados em edições independentes.

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