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BRUNA E PENA BRANCA


 
Ilustração de Romeu Célio para Vento Sul


            Bruna é uma garotinha de 8 anos, pra lá de inteligente e ativa. Amante dos livros e dos animais, ela faz tudo que uma garota da sua idade costuma fazer, como brincar e colecionar dinossauros. Além de cavalgar, paixão que está herdando dos pais.
            Nessa hora, todo cuidado é pouco. Crianças não devem montar em cavalos, naturalmente mais rápidos e ariscos, a menos que os mesmos sejam mansos como burros – ou como jumentos. Os pais de Bruna sabem muito bem disso e suas incursões sobre a sela se dão no lombo de uma mulinha pacata e preguiçosa, dessas que andam como quem está dormindo e só arriscam um trote quando sentem os golpes insistentes da taca no traseiro. Galope, nem pensar, isso é coisa para cavalos!
            Quanto à leitura, Bruna anda de amores com as histórias do meu primeiro livro, Vento Sul, publicado em 2012. Primeiro, ela as ouviu, lidas pelo pai, e, agora que já lê por conta própria, carrega o livro consigo, inclusive para a escola, para curtir os casos da fazenda e do interior nos intervalos dos estudos. Não é motivo para deixar qualquer autor alegre?
            Ao saber da história da Bruna, voltei ao Vento Sul, sete anos depois de tê-lo publicado. Confesso que nunca o havia lido desde então, por receio de não gostar e parar de escrever! No entanto, o livrinho é lindo e apaixonante. Não sou eu quem diz, são os leitores, alguns dos quais (como o pai da Bruna) conhecem as histórias de cor e salteado e viajam no universo rural de antanho visto da perspectiva de um menino.
            Fogo e Água é o nome da história que eu conto agora para vocês, uma das favoritas da Bruna.

            Trata-se da aventura de um menino que tinha acabado de ganhar uma sela nova e estava doidinho para estreá-la, no lombo do melhor cavalo da fazenda, naturalmente. Quando recebeu a ordem do pai-manda chuva para ir ajudar um empregado a buscar uma carga de farinha em outra fazenda, sentiu que o momento de glória tinha chegado. Mas as coisas transcorreram de modo diferente:
            – Carlito, vá com Brito lá em compadre Maximiano! Mande arrear o burro Malhado!
            Fui do céu ao inferno. Com meus novos arreios, eu me considerava apto a montar cavalos rápidos e fogosos, e não burros mansos e sonsos. Tentei uma saída:
            - Malhado machucou a pata no mata-burro e está mancando. Talvez o Pampa...
            Isso só piorou as coisas:
            - Então vá em Bandeirinha, ela está ali mesmo, se esfregando na cerca do quintal.
            Bandeirinha era uma mula tão mansa que até bebês podiam andar de quadro por entre suas patas. Era a autoescola da fazenda, todos aprendiam a cavalgar em seu lombo. Fiquei indignado, mas também com medo de protestar de novo e correr o risco de ele mandar selar uma ovelha para mim. Peguei a bride e fui arrear Bandeirinha.”
            Os dois outros animais da história são um cavalo e um jumento, que assim entram em cena:
            “Pena branca, o jegue – que ganhou este nome por ter uma mancha branca em forma de pena na testa –, já estava equipado com cangalha e balaios, dentro dos quais deveríamos colocar os sacos de farinha. E também Pampa, um cavalo grande e forte, que seria a montaria de Brito, para completar meu desgosto.”
            Tem a ida e tem a volta, que é quando a ação se intensifica, em função de um fogo na manga que se alastra e se aproxima da estrada, enquanto Brito e Carlito pensam no que fazer. Devem seguir adiante ou voltar? Decidem voltar, mas o caminho é cortado pelo fogo. Sentem-se perdidos, e é nesse momento que o instinto dos animais fala mais alto:
            “Pena Branca emparelhou as orelhas e inflou as narinas – ouviu, cheirou, soprou... - e tomou o caminho de casa, com o mesmo passo lento e regular de sempre. Já ia desaparecendo na espessa fumaça quando Bandeirinha o seguiu, de orelhas igualmente empinadas, mas um tanto afoita. O mesmo fez Pampa, à revelia de Brito. O cavalo agitava-se nervosamente, empurrava a mulinha com o peito, que, por sua vez, empurrava o jumento que puxava a guia.”
            E assim escapam vivos:
“Como por milagre, o fogo se desfez, tão súbito quanto tinha surgido. A densa coluna de fumaça foi se amainando e pudemos ver de novo através. O crepitar sinistro foi se distanciando e o barulho seco dos cascos sobre o chão não era mais um réquiem e sim um renascimento.”

            Em suma, foram salvos pelo jumento, o herói insuspeito naquele momento de pânico. Ao guiar a mula, o cavalo e seus ocupantes através da fumaça e do fogo ele ensina uma bela lição sobre a natureza de nossas relações com os animais. É uma história verdadeira, a única que narrei tal e qual em minha vida de ficcionista. A emoção ao lê-la, assim como as demais desse livrinho pouco conhecido mas recheado de personagens marcantes, explica a paixão de Bruna.
            Fica então o convite para que o leitor faça essa descoberta, arriscando-se além dos caminhos batidos da literatura. Com mais um livro no mercado, o recém-lançado O Amor e Outras Tolices, lido com a dificuldade de divulgação habitual dos autores independentes, que consiste em escrever e publicar pelo amor à arte e esperar que as Brunas se multipliquem.

©
Abrão Brito Lacerda
20 10 19

Comentários

  1. Afora golpes de sorte, caro Abrão, dizem os editores mais experientes: as grandes obras dormem séculos nas prateleiras, até serem descobertas por algum bem sucedido caçador de relíquias. Vamos torcer para que a primeira opção seja o caso. Todos ganharemos se o amigo escriba for, logo, lido por todos.

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    Respostas
    1. Nobre Renato, são aspirações a meu respeito que muito me honram, no entanto, guardando as devidas proporções, gostaria apenas de ser mais lido, de romper a densa barreira que se ergue à frente dos autores independentes.

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