Pular para o conteúdo principal

OLD PUNKERS NEVER DIE



            Falarei do poço de crocodilos famintos e da carreira desesperada, em fuga, em Navarra, sol a pino, quando o pai da donzela descobriu que ele era o “cabrón” que tinha “follado” com sua filha. Escapou por um triz, poderia muito bem ter sido escalpelado se não fugisse a tempo. Havia bandoleiros espalhados por toda a área, munidos de drones de vigilância e dardos envenenados, capazes de provocar uma morte agonizante. Os dardos envenenados eram a nova versão das formigas fogo selvagem que puniam os infectos na época do velho oeste. Você anda vendo faroeste demais, francamente. Faroeste é coisa do passado, hoje em dia assiste-se a sci-fies. Você não sabe espanhol, o problema é seu.
             E se você sobreviver até a última palavra desta crônica tresloucada dos sessenta anos, compreenderá perfeitamente por que old punkers não podem morrer. Não é segredo, nem sequer um mistério, não há mais mistério na era das falsas ideologias, mistério havia quando o som que lhe tocava os ouvidos era um vago e hesitante barulho de radio de pilhas, nas tardes melancólicas dos vinte anos, uma era de hippies tardios, punks alucinados e poetas de verve incendiária. Mas o passado, como diz uma velha canção de carnaval, “est mort et enterré”, está morto e enterrado.
            O que importa é esta cena, à mesa do almoço: 
            (É dia das mães, você deve comemorar como todo mundo que ganha mais de um salário mínimo e pode comprar nem que seja uma rosa para a querida mãezinha do seu filho):
            - Filho, experimente o molho que preparei como todo o carinho.
            - É molho de quê?
            - Molho tártaro.
            - Molho tártaro? Você sabe que odeio molho tártaro!
            - Como assim, odeia? Você comeu há duas semanas e ainda reclamou que era pouco. Lambeu os dedos, teve a cachimônia de dizer a sua mãe que o pai andava com miséria na hora de preparar a comida.
            - Pai, eu não gosto de molho tártaro, tá bom? Prefiro qualquer coisa a essa meleca branca misturada com “coisinhas” verdes.
            - Essa meleca branca é sua maionese favorita.
            - E as coisinhas verdes?
            - As mesmas que você comeu e elogiou da última vez.
            Nem adianta explicar que tem também o molho de mostarda, mel e gengibre, que ele pode experimentar, está ótimo – veja!
            Não enfie o dedo na tigela, senão o casamento acaba. O casamento é um das coisas mais importantes na vida de um sexagenário - falo aos que ainda têm a sorte de navegar em uma conjunção carnal quando a outra metade da humanidade sofre de solidão irreparável. Tenho muitos amigos nesse trâmite, digo de experiência própria, não é mera teoria, não são meras alucinações de um velho “stoned”, entendeu?
            Você não sabe o que é stoned, bem, não tenho culpa se você não sabe inglês. Mas explicarei tintim por tintim essa história do fosso dos crocodilos famintos – ela é real, até um ET conseguiria entender:
            - Pai, o Don’t Starve está cada vez mais radical.
            - Ah, é? O que ele aprontou dessa vez?
            - Não é o que “ele” aprontou, óóóh!! Estou falando do Don’t Starve, o jogo, entendeu?
            - Claro que eu entendi. Don’t Starve é seu jogo favorito.
            - Favorito, online. Prefiro o Play Station e o X-box...
            - Tá, tá, captei. E o que tem de tão radical assim no “Don’t Starve”?
            - Quarenta por cento de glicerina valem cem pontos – sabe por quê?
            - Não faço a menor ideia!!!
            - Depois de esgotados todos os recursos do planeta, nem ouro nem diamantes garantem mais a sobrevivência de ninguém. O que vale mesmo é glicerina, porque ela possui alto poder de absorção da água – sabia? E, como a água potável tornou-se o bem mais precioso, com uma barra de glicerina você poderá garantir sua sobrevivência por vários dias.
            - Incrível! Até onde pode nos levar a imaginação desses gamers...
            Na época em que não havia sabonetes glicerinados nem youtubers inócuos que ganham a vida passando adiante desde teorias conspiratórias e hipóteses científicas de validade duvidosa, era preciso viver a experiência diretamente, era oito ou oitenta. Havia a ditadura, assim como a de Franco e Salazar, havia esse arremedo tropical dos regimes autoritários, o dia-a-dia era fucking chato, não tinha internet, netflix e fantasias gráficas, a coisa era reta, você estava lá ou não estava. E as bandas de Nova Iorque, LA e Londres que porventura tocavam nas ondas incertas do rádio soavam precárias e quase morrentes no aluvião das tardes sem fim.
            Depois dos hippies, vieram os punks stoned, tinham-se tornado cada vez mais comuns, você podia pegar o primeiro voo clandestino pra Europa e, sem quê nem pra quê, ver-se metido em uma aventura nos Pirineus espanhóis. La chica era hermosa, por supuesto. Naquele vilarejo de pedras e cúpulas medievais reinava a mais perfeita ordem conservadora. Uma fachada com a imagem do generalíssimo Franco estampava a praça principal. A praça da catedral, ainda por cima! La chica era hermosa, isso sim. Ele tinha comprado bergamotas na feira da praça do Ayuntamiento, não sabia como descascá-las, estava louco para cravar os dentes na carne agridoce daquela fruta abundante. O calor era de lascar, ele comeria com certeza uma barra de sabonete glicerinado.
            - Pai, sabe qual é a última do Don’t Starve?
            - Não sei e nem quero saber! Você interrompeu a minha história, caralho!
            - Pai, você está falando palavrão.
            - E daí? Antes em casa do que na rua.
            - É a dos crocodilos famintos!
            - E eu estou na parte em que o cara escapou de um pai que o perseguia com drones, só porque tinha “follado” com sua filha.
            - O que é “follado”, pai?
            - É... bem, explica primeiro a dos crocodilos famintos.
            - Pra escapar do poço dos crocodilos que vigiam as fronteiras de Don’t Starve, coisa que até agora ninguém conseguiu, basta ter uma minibarra de glicerina hidrolisada no bolso. Sabe por quê?
            - Estou louco pra saber.
            - A glicerina hidrolisada tem um poder de absorção vinte e três mil vezes maior do que a comum. Se você jogar um pedaço em um pântano, ele seca em quinze segundos.
            - Estou impressionado. Quer me contar mais alguma coisa.
            - Não – e precisa? Isso não é impressionante?
            - Sem dúvida, às vezes acho que estou perdendo tempo inventando histórias, poderia muito bem ser gamer.
            Então, a Chica, devo contar brevemente como era sua graça. Grandes olhos negros, um sotaque gentil de erres e dês parados no céu do palato. Convidou-o a descascar as bergamotas em sua masmorra, ao fundo de uma rua medieval. “Shhh!”, ela fez-lhe docemente ao ouvido enquanto desciam o calçamento de pedras irregulares. Fotos emolduradas do generalíssimo enfeitando as porta das casas, tinha um jardim, um beco protegido por begônias e trepadeiras – um pequeno cafofo, misteriosamente protegido dos olhos indiscretos no fundo da morada. Além de bergamotas, comeram também maçãs, retiradas diretamente do pomar que se erguia ao pé da colina. Ele tinha vinte anos – ela, bem, com certeza alguns a menos.
            Ao ouvir gritos furiosos que vinham de cima das muralhas, saltou da macieira, just in time de não ser escalpelado, pelo genitor, um “carniceiro” rude que falava entre os dentes e repetia a palavra “cabrón” a cada frase. Bandoleiros de toda parte puseram-se em meu encalço, com drones e dardos envenenados, alguns carregando a bandeira da cruz e da espada.
            A machadinha da guerra tinha-se erguido de novo nas terras de Pamplona. Esse povo habituado às touradas e aos espetáculos de feitiçarias tinham-se esquecido havia muito tempo dos segredos do amor. Vote! Não fosse ele um punker, com certeza não teria escapado com vida.
.
©
Abrão Brito Lacerda
12 05 19
           
           
           
           





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PAULO LEMINSKI: POESIA DO ACASO

Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:          eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo         não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? ele que cuide de seus assuntos eu cuido dos meus Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).          Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que o artista busca. Mallarmé (vejam minha postagem de 17 de março de 2012 sobre o poema Salut ), o mestre que faz os

TSUNESSABURO MAKIGUTI: A EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE VALORES

                Mais conhecido como fundador da Soka Gakkai, sociedade laica japonesa que atua pela promoção da paz, cultura e educação, Tsunessaburo Makiguti (1871 – 1944) teve uma vida intensa, pontuada por momentos dramáticos. A começar por sua origem, no seio de uma família pobre do noroeste do Japão. Aos três anos de idade, foi abandonado pelos pais após sua mãe tentar suicídio, atirando-se com ele nos braços no mar do Japão. Foi adotado por um tio, com o qual viveu até os 14 anos e, posteriormente, foi morar com outro tio. Começou a trabalhar cedo e, com grande dedicação, concluiu o curso normal, tornando-se professor primário e também diretor de escola, função que ocupou por mais de vinte anos.             Foi das anotações sobre suas experiências didático-pedagógicas que surgiu o seu segundo livro, Soka Kyoikugaku Taikei ( Sistema Pedagógico de   Criação de Valor es ) , publicado em 1930, em parceria com seu amigo e colaborador Jossei Toda.              Os dois prime

IBIRAJÁ

            Ibirajá é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura. Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.             Entre o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o segundo, de temática totalmente diferente.             Vento Sul é um inventário de minha infância. Eu o via co