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A TERCEIRA IDADE E OUTRAS




                Não pensem que completar sessenta anos é ruim, ao contrário, eu digo que é melhor do completar quarenta ou cinquenta, por diversas razões. Em primeiro lugar, é a prova cabal de que sobrevivemos às fases anteriores e podemos, finalmente, escolher o que melhor nos convém. Não nos deixemos intimidar, portanto. Retirando, por razões evidentes, o youtube, o netflix e as férias na praia, esse mundo anda caretérrimo.
                Ouçam o que tocam nos streamings ou nos breaks comerciais da Rede Globo e você entenderá o que quero dizer. E, como sou um velho, posso também ser um freak e manter-me fiel  ao espírito veintiañero, à idade heroica de vinte anos, o que para mim corresponde ao final dos anos 70 e início dos 80, época de ditadura militar, mas também de punk rock. Naqueles mundo  pós-hippie e pré-aids, mes amis, um montão de coisas rolaram e foi muito bom - sobretudo um som de fuder-les-oreilles. 
            Agora que os conservadores estão de volta ao comando da política e da sociedade, não custa reacender a chama de tempos mais iluminados do passado. Um texto punk e anárquico é tudo de que precisamos nesse universo de escrita mainstream, de citações e confrarias, tolices vestidas de hipsters, preparadas sob medida para ribombar nas redes. À monotonia do sertanejo universitário e do funk, valham-me as guitarras cortantes, as baterias rápidas como metralhadoras e as letras vibrantes de tesão juvenil do velho e bom rock and roll.
            O futuro nos pertence, é hora de aproveitar. Pequenas bijuterias antes tratadas com desdém agora vêm somar-se ao menu dos velhinhos que nunca  quisemos ser. Não há nada de errado em ocupar a vaga de idoso no estacionamento rotativo, desde que você possua a carteirinha para tal. Sobretudo, porque ela dá direito a duas horas de parking, mesmo onde o prazo regulamentar é de uma hora - além de ser válida em todo o território nacional!


            E a ficha preferencial nos locais de atendimento público, como bancos e correios? Há ainda descontos em museus e viagens, coisas de que estou ávido a desfrutar. Olharei enfim à altura aquela vizinha antipática, que paga todas as contas da família no guichê da casa lotérica e lança aos jovens apinhados na fila de espera um olhar de pura pretensão. Esfregarei em seu nariz meu cartão do idoso, quero ver o que ela vai dizer.
             Somos nós que representamos a versão 6.0 do provérbio latino mens sana in corpore sano, portanto, de nada adianta uma mente sã se o corpo está caquético. Corpo e mente formam juntos uma única entidade. Tanto a aparência quanto a consistência, assim como a natureza, a entidade, o poder, a influência, a causa inerente, a relação, o efeito latente e o efeito manifesto, combinam-se para formar o que somos: seres em si, sem metáforas.

©
Abrão Brito Lacerda
20 05 19

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