Pular para o conteúdo principal

E AMANHÃ SEI QUE ESTAREI MUDO



             O budismo nos ensina que a razão da infelicidade humana são as ilusões e os apegos. As ilusões têm a ver com a falta de conhecimento do que constitui a verdadeira natureza da existência, por exemplo, quando ignoramos que a vida material constitui um ciclo que tende a desaparecer mais cedo ou mais tarde, assim como todos os demais fenômenos. O automóvel de luxo de hoje será sucata amanhã e o corpo duro de agora não passará de cinzas que alimentará os vermes dentro de alguns anos. Portanto, não devemos nos apegar a coisas e ideias, devemos aceitar o fluir permanente da vida, reaprender a cada dia, rever nossos conceitos à luz dos fatos.
            Assim dito, até parece fácil, contudo o mundo em que vivemos nos educa exatamente no sentido contrário, qual seja, o de adquirir, possuir, acumular, além de classificar, separar, escolher e excluir o que não está dentro de um determinado padrão, o que constitui, sob qualquer ponto de vista, uma medida falsa.
            É quando a vida preciosa desaparece em um átimo que nos damos conta de nosso o erro e relativizamos (ainda que por breve tempo) o alcance de nosso pequeno mundo e nos damos conta das fantasias que cultivamos.
            Estas reflexões me vêm à mente quando sou surpreendido com o desaparecimento de uma pessoa de minhas relações, não um parente ou amigo chegado, mas um conhecido e parceiro com quem compartilhei uma relação de respeito nesta cidade do interior, onde aqueles que não fogem das ruas e dos contatos comuns acabam fatalmente se cruzando. Trata-se do senhor José Geraldo da Silva, um jovem aposentado que exercia ultimamente a profissão de eletricista.
            Nada sei da sua vida fora de nosso contato profissional, mas posso afirmar que se tratava de um homem de grandes qualidades. Tratava, cumpria, realizava as tarefas com capricho e boa vontade, cobrando o preço justo para tal. E era uma ótima prosa, demonstrava discernimento e sensibilidade, cultivava as relações com o respeito dos que enxergam além das aparências.
            Passei a conhecê-lo, não me lembro bem como, através de uma indicação, talvez. Com o tempo, tornou-se uma referência para mim quando se tratava de realizar serviços elétricos ou buscar outro profissional. Instalar um ventilador, consertar uma máquina, encontrar um serralheiro, um vidraceiro, um encanador, onde procurar? A solução era ligar para o seu José Geraldo, ele conhecia todos os profissionais da cidade, recomendava os honestos e confiáveis. De tal modo que boa parte dos equipamentos de minha casa e local de trabalho contem suas digitais. Os quadros da parede foram todos fixados com o uso de sua furadeira (emprestada com toda a boa vontade), assim como o novo mapa mundi gigante que faz a alegria dos meus alunos e a nova ducha da casa - que ele instalou anteontem, um dia antes de morrer!
            Por um desses acasos que fogem a nossa compreensão, mandei-lhe uma mensagem informando que seria preciso trocar a resistência da ducha, pois eu tinha me enganado quanto à voltagem. O retorno foi o comunicado do seu falecimento, ocorrido algumas horas antes. Cada ofício tem seus vícios, é preciso cuidar-se sempre. Durante a realização de um serviço de eletricidade, ele desequilibrou-se e caiu da escada, vindo a bater com a cabeça no chão e falecer. Assim, sem qualquer outro motivo, aos 61 anos de idade, alegre, sorridente e calmo. Um dia antes ele tinha ido à minha escola apanhar a furadeira, que mais uma vez tinha me emprestado. Foi o nosso último contato em vida.
            Tratava-me cortesmente de professor, como todos aqueles que por mim têm apreço. Deixo aqui expressas a seus familiares e amigos minhas sentidas condolências e uma última homenagem na forma desses versos de Cecília Meireles:

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada."

©
Abrão Brito Lacerda
15 03 19


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PAULO LEMINSKI: POESIA DO ACASO

Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:          eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo         não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? ele que cuide de seus assuntos eu cuido dos meus Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).          Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que o artista busca. Mallarmé (vejam minha postagem de 17 de março de 2012 sobre o poema Salut ), o mestre que faz os

TSUNESSABURO MAKIGUTI: A EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE VALORES

                Mais conhecido como fundador da Soka Gakkai, sociedade laica japonesa que atua pela promoção da paz, cultura e educação, Tsunessaburo Makiguti (1871 – 1944) teve uma vida intensa, pontuada por momentos dramáticos. A começar por sua origem, no seio de uma família pobre do noroeste do Japão. Aos três anos de idade, foi abandonado pelos pais após sua mãe tentar suicídio, atirando-se com ele nos braços no mar do Japão. Foi adotado por um tio, com o qual viveu até os 14 anos e, posteriormente, foi morar com outro tio. Começou a trabalhar cedo e, com grande dedicação, concluiu o curso normal, tornando-se professor primário e também diretor de escola, função que ocupou por mais de vinte anos.             Foi das anotações sobre suas experiências didático-pedagógicas que surgiu o seu segundo livro, Soka Kyoikugaku Taikei ( Sistema Pedagógico de   Criação de Valor es ) , publicado em 1930, em parceria com seu amigo e colaborador Jossei Toda.              Os dois prime

IBIRAJÁ

            Ibirajá é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura. Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.             Entre o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o segundo, de temática totalmente diferente.             Vento Sul é um inventário de minha infância. Eu o via co