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DOIS AMIGOS

       
(Imagem: www.peterexpress.or)
       Cândido Pierrot atravessou o deserto em lombo de camelo no intuito de reencontrar o grande amigo de infância, que tinha resolvido trocar o sertão pela Arábia. A marcha dura do dromedário, o sol implacável, a desconfiança dos beduínos, nada o desencorajou. Após dias de viagem, chegou a um oásis onde brotava água fresca e as tâmaras frutificavam em abundância. Mas os guardas da tribo, ao vê-lo sem túnica e turbante, tomaram-no por um espião, prenderam-no e levaram-no ao chefe.
         - Que fazes aqui, galego? Espionando nossas fêmeas? – indagou o xeique, batendo com o cajado de osso de camelo no chão.
            Pierrot ergueu os olhos discretamente. O xeique estava sentado em um trono de madeira coberto com pelo de camelo. “Tofu”, pensou. “Se não encontrar um álibi convincente, serei servido no repasto da noite. Ou talvez me amarrem no rabo de um camelo bêbado e o soltem pelo deserto. Se tiver escolha, vou preferir ser servido no jantar – com bastante pimenta. De qualquer modo, vou manter os olhos baixos, para que ele não me tome por um insolente.”
            - O que buscas nas terras de Alá, forasteiro de pele pálida? – repetiu a pergunta o xeique, batendo mais forte com o cajado.
            Pierrot continuou mudo – como responder, se nada entendia do idioma badawi?
            - Cortem a língua desse infiel! – ordenou o xeique.
            Pierrot sentiu o sangue gelar em suas veias. Seu único recurso foi gritar:
            - Se avexem, barbudos, me soltem!
            O xeique ficou paralisado. Mirou o estrangeiro por algum tempo, fez um gesto para que os guardas o soltassem, ergueu-se e caminhou até ele, falando discretamente:
            - Ó xente! Você fala português?
            Pierrot sussurrou, quase um suspiro:
            - S-sim, acabei de chegar na caravana da “hora do calango tostado” (por volta das 15h00). S-sou de Sobral, no Ceará.
            - Arriégua! E como veio parar aqui?
            - Estou procurando um amigo que se mudou para cá há muitos anos.
            - Ele também é de Sobral?
            - Com certeza. É por isso que estou aqui. Tenho uma carta para ele.
            - Carta? Aqui no deserto só usamos Whatsapp e wi-fi.
            - Foi a namorada dele quem escreveu antes de ele se mudar para cá, mas não teve tempo de entregar.
            O xeique ergueu o cajado e deu nova ordem:
            - Tragam água para este homem! Deem-lhe banho, sopa de leite de camela com lentilhas e roupas limpas! Levem-no depois para uma tenda onde descansar!

            Ao cair da noite, estando Pierrot bem instalado numa tenda de couro de camelo, o xeique apareceu, acompanhado de uma mulher e duas crianças. Pierrot inclinou-se em respeito.
            - Você está bem melhor – disse o xeique, demonstrando bom humor. – Quando chegou, estava fedendo feito um bode do Cariri.
            - Obrigado por me salvar, isto é, por não me deixarem cortar a língua. Você fala português com sotaque nordestino...
            - É que também sou de Sobral no Ceará. Cheguei aqui há vinte anos e comecei a negociar com camelos, me dei muito bem, me casei com uma berbere e agora sou o chefe do Oásis de Jamil Arratab (Camelo Molhado, em árabe). Meu nome é Gervásio Comodoro.
            - Então você é...
            - O amigo que você veio procurar!
            Ainda não sabiam como se portar um com o outro, se formalmente ou à moda antiga.
            - Onde está a carta?
            - Aqui!
           O xeique abriu a carta, ainda perfeitamente selada, leu-a em silêncio: “Gervásio, agora que você está prestes a partir, tenho que lhe confessar que amo o seu melhor amigo, Cândido Pierrot. Peço perdão por tê-lo traído.”
            - E a Marcela?
            - Ela agora é minha esposa.
        Nesse momento, a mulher e as crianças, que tinham ficado do lado de fora, entraram na tenda.
            Os dois amigos se levantaram e trocaram um longo abraço.
©
Abrão Brito Lacerda

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