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PIQUENIQUE


(Imagem: www.emblibrary.com)

            Piquenique é menos comum hoje em dia do que na época em que a palavra se escrevia com hífen. Por outro lado, o interesse decrescente entre nós a respeito corresponde ao confinamento em que vive a maioria dos citadinos.  Mas alguns povos ainda guardam esse hábito fundador da humanidade: desde os primórdios os homens sentaram no chão para comer, conversar e celebrar.
            Os japoneses, por exemplo, lotam os parques no Hanami ou Festival da Floração da Cerejeira, quando celebram a chegada da primavera e das atividades ao ar livre. Colocam sobre o chão uma esteira, um tatame ou uma toalha, mais um cesto de víveres, e várias gerações se assentam no mesmo nível. Tradição oblige, aqui e ali, gueixas se deixam entrever sob a luz tênue das sombrinhas, tão discretas e cool que fazem pensar que é de seus suspiros que nascem os botões de cerejeira.
Londres também cultiva o plein air, embora com humor diferente: em dias de sol, especialmente no verão, muitos parques parecem praias nudistas ao primeiro olhar, como o Green Park, lugar favorito de picnic entre jovens. Para facilitar as providências com o tradicional Staples & alcohol, ou comes e bebes, é possível, inclusive, fazer uso de um delivery que se propõe a entregar qualquer pedido para um dos grandes parques da cidade dentro de 60 minutos. É o Parknic. E as jovens loiras, ruivas e afins estendem-se ao sol bem à vontade – suas bochechas, de alvíssimas passam a rosadas, depois a rubras, o que nos leva a imaginar que elas se incendeiam definitivamente quando a noite chega.  
Os parques de Buenos Aires rivalizam com os de Londres, com a vantagem de saírem muito mais em conta. Como os argentinos encaram os parques como extensões de suas casas, encontramos em toda parte gente passeando com o cachorrinho, rodinhas de bate-papo entre amigos, universitários revisando a matéria da faculdade... e picnics, regados a empanadas y chimarón. Com sorte, um espetáculo de tango para nos fazer esquecer os pelotudos (chatos) e admirar os atributos das danzarinas, jovens atléticas e elásticas que executam, sempre com olhar fixo e lânguido, giros sobre os quadris de granito, aberturas incríveis, saltos com o vestido de fenda esvoaçando...
E pensar que já houve época em que não era preciso ir tão longe por causa de um simples piquenique. Bastava preparar o pão, o picles e a salsicha ou o frango frito, ervilhas em lata como must.
Lembro-me de uma vez saímos em excursão pela beira do rio, não para pescar, mas sim para tomar banho como principal diversão. Passamos a manhã inteira dando saltos-mortais de um barranco alto de quase dez metros e quando voltamos para a barraca, verdes de fome,   as formigas tinham chegado antes de nós. Levaram nosso almoço! Mas a barraca ficou e, dentro dela, uma cobra de dois metros de comprimento.
Disposto a reviver as velhas práticas, combinei um encontro entre amigos em um clube não muito longe de São José do Paraíso. O clube tinha um ítem indispensável hoje em dia: conexão wi-fi. Obviamente, todos levaram seus smartphones e ficamos todos ligados via satélite na sombra das árvores, pois uns gostam de country, outros de rock e ainda tem gente que ouve gospel. Começou a cair uma chuva daquelas e tivemos que voltar para casa com o pão, o salaminho e os picles. E ainda tem gente que acha que os parques devem ser equipados com  free high speed wi-fi. É o fim.
©
Abrão Brito Lacerda
09 02 16

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