Pular para o conteúdo principal

RUTE

(Imagem: www.clipart.me)


O caixa que era para ser o mais procurado da padaria, andava às moscas. A fila era minguada, e havia boas razões para isso: nada da esperada cortesia, obrigado, boa noite - a nova atendente tinha a cara amarrada. Traduzidas em gestos rudes, as intenções da moça eram um mistério. Havia quem fingia namorar as tortas da vitrine e escorregava para o outro caixa; outros enfrentavam os tratos da miss grosseria:
- Quer cinquenta centavos para facilitar o troco?
- Quando precisar, eu peço.
E jogava as moedas sobre o balcão.
Uma jovem assim tão poluta é como a Baía de Guanabara: é bom admirá-la de uma distância segura. Mas há de ter futuro, como todos nesta terra de santa cruz.
A pergunta de um cliente corajoso:
- Qual é o seu nome, meu bem?
E a resposta sem evasivas:
- Meu nome é Rute. Por que quer saber?
- É o nome de uma pessoa inteligente e de muitas virtudes.
Boca de desprezo. A blusa apertada da garota, com os botões quase se rompendo à altura do peito deixava à mostra braços firmes, terminados em mãos acostumadas a tocar coisas ásperas.
Assim foi por muito tempo, parecia a história do pau que nasce torto e só cai pro lado errado.
Mas não é que a Rute mudou de modos, de repente? O que foi, o que houve? Foi advertida pelo gerente, passou a enxaqueca?  E mudou muito, começou a dizer obrigada pela preferência, volte sempre. Um sorriso tímido delineou-se em seus lábios, inicialmente forçado, depois mais natural. Em seguida, apareceu de unhas pintadas, um rubro sanguíneo, sobrancelhas bem delineadas. Humm!... As mãos tinham perdido a aparência de lixa, o cabelo tinha se libertado da touca marrom que o aprisionava e Rute tinha ficado mais atraente a olhos vistos.
E tagarela também:
- Sou de Pinha do Norte, o senhor já ouviu falar?
- Não. É longe daqui?
- Beeem longe. Eu trabalhava numa fazenda colhendo café - êta vida dura!
De vez em quando, estava trocando risos maliciosos com a moça do outro caixa, que tinha virado cúmplice de segredos intermináveis.
Segredos de quê, qual a razão de tal milagre? Rute andava um doce em festa de criança, a casca da noz tinha sido rompida de vez. Um súbito fervor passou a saltar em faíscas por seus olhinhos castanhos, e ninguém para lhe dizer: Rute, não faça isso! Homem é tudo falso; hoje te quer e amanhã te troca por outra!
©
Abrão Brito Lacerda
15 05 15

Comentários

  1. Estava tão bom, que ficou com gosto de quero mais... Acabou antes que eu queria...
    Muito bom, Abrão. Como sempre!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esta é de uma série que pretendo produzir ao longo do ano retratando personagens, para no final ter um livro. Ainda que (quase) sem leitores e com as dificuldades naturais da publicação, procurarei evoluir e inovar em minha escrita.

      Excluir

Postar um comentário

Gostaria de deixar um comentário?

Postagens mais visitadas deste blog

IBIRAJÁ

            Ibirajá é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura. Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.             Entre o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o segu...

PAULO LEMINSKI: POESIA DO ACASO

Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:          eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo         não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? ele que cuide de seus assuntos eu cuido dos meus Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).          Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que...

TU ES PLUS BELLE QUE LE CIEL ET LA MER: Un poème de Blaise Cendrars

             Feuille de titre, avec dessin de Tarsila do Amaral           C’était en 1983, je crois. J’étais chez un ami traducteur, avec qui je passais des heures à brûler des joins, essuyer des scotchs et rouler les mots à propos de tout et de rien. Une échappée belle dans sa bibliothèque et j’en suis sorti avec un petit livre de la taille d’un paquet de cigarette, que j’ai commencé à lire au hasard – une page, deux... et, tout de suite, cette merveille : Tu es plus belle que le ciel et la mer Quand tu aimes il faut partir Quitte ta femme quitte ton enfant Quitte ton ami quitte ton amie Quitte ton amante quitte ton amant Quand tu aimes il faut partir Le monde est plein de nègres et de négresses Des femmes des hommes des hommes des femmes Regarde les beaux magasins Ce fiacre cet homme cette femme ce fiacre Et toutes les belles marchandises II y a l'air il y a le vent Les m...