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O DEUS DE PEDRA



Foto de Sérgio Gadelha


            Era um tipo mediano, de cabelos grisalhos, aparados à altura das orelhas e densa barba descendo em “v”. Mas sua constituição era robusta: mãos calejadas, músculos fortes e pés de andarilho. O nariz era grande, desses que sempre chegam antes do corpo, e a boca, velada, de cujo antro partiriam provérbios enigmáticos:
            “Quem vive na serra, tem gosto de terra.”
            “Todo homem deve criar um deus a sua imagem e semelhança.”
            Seus hábitos, embora simples como os de um monge, prestavam-se a toda sorte de especulações. As pessoas do lugar o conheciam como Dedeperre, Depa ou, simplesmente, Perre. Parece que, desprovido de parentes e derentes,  havia removido qualquer traço de história do próprio nome, resignando-se em ser o homem em si, sem epítetos:
“Não carrego sobrenome, como não carrego mochila.”
Morava aos pés da Serra do Trovão, na Chapada de Santana, cercanias de Ouro Preto. Era visto no alto da serra mas dificilmente descia até o vilarejo, localizado 400 metros abaixo.
Numa dessas raras ocasiões, cruzou com um grupo de turistas que subia a montanha pela trilha de Lavras Novas. Os visitantes, assustados com sua aparência exótica, saltaram para o lado do caminho e o deixaram passar entre eles, o que motivou uma estranha troca de olhares.
- Quem é esse? perguntaram ao guia.
- É o Depa. Um cara que mora no alto da serra.
- O que ele faz?
- Ah, isso ninguém sabe. Dizem que fica zanzando por aí, comendo raízes e mel, vigiando.
- Vigiando o quê?
- Ah, isso ninguém sabe. Contam que ele recebeu uma herança lá no país dele e enterrou em algum lugar da montanha.
Os amigos subiram pela encosta, atravessaram o caminho entre as rochas e chegaram ao topo, de onde puderam contemplar o horizonte, formado por uma primeira linha de montanhas cor de chumbo e depois sucessivas linhas de montanhas que se estendiam a perder de vista.
Ao retornarem, estavam encantados e faziam planos para o futuro:
- Quanto vale um terreno por aqui? perguntou Sami, o sociólogo, ao guia matuto.
- Ah, isso ninguém sabe. Mas, se quiserem informação, é só procurar no bar.
Estavam voltados para o poente. A abóbada celeste brilhava com o púrpura profundo do crepúsculo. Algumas flores minúsculas, boninas ou douradas, podiam ser notadas entre a vegetação rala que predominava nos altiplanos.
- Vejam! Uma escultura enterrada!
Judite, a psicóloga, deu o alarme.
Havia, de fato, uma perna de granito enfiada no meio da vegetação.
- Parece a perna de um deus grego, brincou Manolo, o historiador. Ajudem a desenterrar.
O guia ficou observando à distância, enquanto os cinco amigos arrancavam a escultura da terra encascalhada.
Daniel, o professor, mostrou-se entusiasmado com a descoberta e ao mesmo tempo frustrado, porque se tratava apenas de uma perna:
- As outras partes devem estar por perto. O que vocês acham de a gente procurar?
- É melhor a gente acabar de descer, sugeriu Pâmela, a mofina. Está começando a escurecer.
Além disso, era domingo e, no dia seguinte, deveriam estar de volta ao trabalho em BH.
- Então vamos colocar isso em um local protegido, propôs o Sami.
E foi o que fizeram. O guia, que tinha permanecido à distância o tempo todo, pronunciou-se:

- Você não deviam ter desenterrado a estátua. Aqui nessa serra acontecem coisas assombrosas...
E despertou o bom humor dos amigos.

As pretensões imobiliárias do grupo não foram adiante, mas a de arqueólogos, sim. Voltaram no sábado seguinte, ainda que Daniel tenha vindo apenas “para fazer companhia” e Pâmela começasse a ter sonhos estranhos com estátuas falantes.
Ao procurarem pelo guia Gentil, o homem estava cheio de cismas:
- O Dedeperre não apareceu mais depois que vocês estiveram aqui.
Coube a Sami romper o impasse através de uma proposta irrecusável:
- Pagamos o dobro pra você mostrar as trilhas pra gente.
Gentil riu com artimanha:
- Olha, só vou porque prometi a dona Judite...
Exploraram todos os caminhos da serra e suas adjacências e voltaram a Chapada de mãos vazias, o que gerou a desistência de Daniel e Pâmela, que preferiram a retornar a BH no mesmo dia.
 
Chapada de Santana, Ouro Preto. Foto do autor.
Quanto a Sami, Judite e Manolo, armaram barraca no quintal de um morador e prepararam planos ambiciosos para o dia seguinte, com a ajuda de uma garrafa de Jack Daniels que tinham trazido no bagageiro. Estavam a mirar estrelas quando receberam uma visita inesperada.
O homem chegou e foi se apresentando:
- Sou Jospa Rufino. Trabalhei nos correios em Ouro Preto, fui alferes e agora sou bibliotecário. Ouvi falar que vocês estão procurando a estátua de Dedeperre.
- Por que “estátua de Dedeperre”?
- Porque o Dedeperre falou de uma estátua enterrada lá na serra. Ele disse que era um deus.
- Achamos uma perna. O senhor sabe onde estão as outras partes?
- Eu sei.  
            E prometeu leva-los até lá no dia seguinte.
            Quando o dia clareou, subiram a serra até um largo recoberto de gramíneas, onde encontraram, semienterradas tal qual a primeira perna, as outras partes da estátua, com exceção da cabeça.
Mais uma vez, sentimento de euforia e frustração. Manolo inquiriu seu Jospa:
- Alguém já esteve neste lugar além do senhor?
            - Meu bisavô. Ele viu e contou pro meu avô, que contou pro meu pai, que contou pra mim.
            Judite viu algo de incongruente na história contada por seu Jospa Rufino e propôs que procurassem o Dedeperre:   
            - O senhor sabe onde ele mora?
            - Só o Gentil sabe, esquivou-se o ex-alferes.
A contragosto, foram procurar novamente o guia, que estava ainda mais arredio:
            - Tenho medo de ir até lá.
            - Medo de quê?
            - Acontecem coisas estranhas nessa serra, dona Judite. Quem é do lugar, não quer saber de assombração.
            - Assombração aparece para quem acredita. Nós iremos sozinhos. Se acharmos o pote de ouro, não teremos que dividir com você.
            Os olhos de Gentil brilharam:
            - Nesse caso, como prometi à senhora...
O guia os levou até a choça, mas ficou à distância. A casa não passava de uma gruta combinada com um pouco de alvenaria, situada bem no fundo de um vale, protegida por árvores frondosas. Havia três cômodos divididos cartesianamente, cozinha, banheiro e quarto. A entrada dava para o poente e estava coberta por folhas de palmeira, de modo que só era perceptível muito de perto.    
            O local, no entanto, parecia desocupado havia um bom tempo. Não havia sinal de fogo, nem restos de alimentos ou mesmo utensílios usados.

            Sami, Judite e Manolo retornaram a Chapada com mais perguntas do que respostas. Conversaram com moradores e ouviram histórias sobre o estranho Dedeperre, incluindo a última, a do seu misterioso desaparecimento. No entanto, os amigos nada comentaram sobre a descoberta que tinham feito. Seu Jospa Rufino tinha prometido fazer o mesmo.

            Seria esta uma história sem final, não fosse o acaso. Vários dias depois, Sami se deparou com uma foto postada em uma rede social, que mostrava uma cabeça de granito solta no meio das pedras de um córrego.
Ele não perdeu tempo e encaminhou imediatamente o clichê a seus colegas detetives. A opinião comum foi que se tratava provavelmente da cabeça que estavam procurando e assim decidiram fazer uma segunda viagem a Chapada. Dessa vez, não precisaram dos préstimos de Gentil, o guia ardiloso, nem de Seu Jospa Rufino, o alferes aposentado porque o autor da foto tinha indicado com precisão onde ela fora tirada.

Não conseguiram esconder a emoção ao retirarem a pesada cabeça do leito do córrego Santa Rita. Sentiam-se no limiar de uma descoberta histórica. Colocaram a cabeça sobre um lajedo, retiraram o barro que a cobria com água corrente, examinam as feições:
- Mas é o Dedeperre!
Coube a Judith resolver o enigma:
 - Se esse tal de Dedeperre tem ascendência francesa como dizem, seu codinome não passa de uma corruptela de “dieu de pierre”, ou seja, “deus de pedra”.
- Grande, senhora Sherlock Holmes!
Ao chegarem ao vilarejo de Chapada, uma segunda surpresa os aguardava. Seu Jospa Rufino comunicou que as partes da estátua que tinham sido desenterradas, incluindo a primeira perna, tinham desaparecido sem deixar rastros.  E o guia Gentil exibia um ar de triunfo:
- Dedeperre voltou!
De fato, do alto da serra uma silhueta vaga os observava fixamente. Os amigos olharam para onde tinha apontado gentil e sentiram um arrepio.
- Acontecem coisas assombrosas por aqui!

©
Abrão Brito Lacerda
28 02 18





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