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RECEITA DE BOLO PARA SER FELIZ




 

         Muita gente tem um slogan que a orienta na vida: “hei de vencer”, “minha casa, minha vida”, “presente de Deus”. O meu é mais singelo e apela simultaneamente a nossos instintos contraditórios de autopreservação e prazer. Dou vênia aos que rirão e aos que não, aos céticos e aos diabéticos, aos infelizes e aos que têm alergia a trigo, enfim, confesso: quem me ama, faz bolo para mim.

            Por falta de amante e até mesmo por conveniência, comecei a fazer bolos, pois não tenho saco para ir à padaria todo dia, biscoitos de caixinha dão azia e outros petiscos comprados para o café da manhã amanhecem duros no dia seguinte (aproveito para contar o caso do pão de queijo traído: era uma vez um pão de queijo que virava um pau quando esfriava; um dia ele se derreteu por uma maria mole borrachenta e frígida, virou polvilho de novo e ela o trocou por um brioche).

            Bolo de chocolate, bolo de milho, bolo de banana, bolo de goiaba (meu maior fracasso), bolo de aipim, bolo de laranja, bolo de iogurte. Com glúten e sem, farinha de trigo, farinha de arroz, farinha de amêndoas. Experimentei de tudo e cheguei à conclusão que precisava, urgentemente, encontrar alguém para matar a minha fome. E foi aí que descobri o bolo de cenoura.

            Estava eu, tagarela como sempre, fazendo compras no sacolão e tecendo elogios à cenoura crua, quando uma senhora me disse: “Melhor ainda para fazer bolo”. Verdade santa! Eu tinha que aprender a fazer bolo de cenoura! Era um caso urgente, os anos se passando e eu perdendo tempo com amores falsos, que não sobrevivem ao dia seguinte! Perguntei a ela qual era o segredo e ela respondeu: “nenhum, basta usar os ingredientes na proporção certa”.

            Este é o primeiro segredo do bolo: equilíbrio. Mais do que ioga, budismo ou meditação, bolo gosta de ingredientes balanceados. Não pode ser doce demais, mole demais, cremoso demais, grudento demais. O bom bolo é leve, fofo e cheiroso, além de gostoso. Bolos pesadões? Tô fora! Nem bolo de casamento! E essa história de que bolo engorda está mal contada: o problema não é comer bolo, e sim engordar e ter que parar de comer.

            O cheiro é um componente fundamental do bolo, aquele cheiro quente de massa assada, misturado à essência que dá alma ao bolo: laranja, nozes ou chocolate. Metade do prazer do bolo vem do seu aroma. A perfeita sensação que você experimenta quando morde a carne fofa, com várias camadas de paladar, é apens um detalhe.

            (Agora uma história do tempo da guerra fria: os espiões soviéticos se reuniam numa confeitaria de Viena, onde tramavam os mais pérfidos truques saboreando sachertorte e floresta negra. Um dia, os americanos envenenaram o bolo.)

            Perguntas e respostas para os ignorantes que leram até aqui:

            - Com ou sem cobertura?

            - Para quem tem competência, cobertura é ótimo. Porém isso dobra o trabalho e altera a camada superficial do bolo, que é justamente a mais cremosa e gostosa.

            - Com recheio?

            - Siiim! O recheio acrescenta surpresa e mistério ao bolo.

            - Como saber se o bolo está pronto?

            - Empiricamente ou com a ajuda de um relógio. O bolo avisa quando está pronto, exalando o aroma típico. Se não tiver prática ou estiver com sinusite, cronometre o tempo.          

            - Posso abrir a porta do forno enquanto o bolo está assando?

            - Quando eu disse ignorante, não esperava tanto. Espere o tempo mínimo necessário e aproveite para ler suas mensagens.

            - Quente ou frio?

            - Às vezes não dá para esperar. Mas frio é melhor, pois a camada cremosa se forma quando o bolo esfria.

            - Guardar na geladeira?

            - O calor tropical faz mal à pele sensível do bolo, sobretudo os cremosos. E, se na sua casa um bolo dura mais de dois dias, dê a ele o prazer da geladeira enquanto aguarda para ser comido.

 

            E agora minha receita de bolo de cenoura, com dicas grátis:

            - Duas cenouras médias

            - Duas xícaras de chá de farinha de trigo (dica: peneire a farinha para o bolo ficar mais soltinho)

            - Uma xícara e meia de açúcar (dica: ajuste para um pouco mais ou um pouco menos segundo seu gosto)

            - Um pouco menos de meia xícara de óleo (dica: óleo de canola é ótimo)

            - Três ovos (dica: não use ovos de codorna).

            - Uma tampinha de fermento ou uma colher de sopa bem cheia.

            Preparo da calda: rale, corte as cenouras e coloque-as no liquidificador, juntamente com o açúcar, os ovos e o óleo. Bata em seguida.

            Para misturar, coloque na batedeira juntamente com a farinha e o fermento (não recomendo liquidificador) ou faça à mão, que é o mais recomendado, por uma razão primordial: você transmite ao bolo sua energia pessoal, com toques suaves e harmônicos. Depois de pronto, seu bolo te agradecerá.

            Assar por 30 minutos a 200 graus.

©

 

Abrão Brito Lacerda

04 02 23

 


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