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O HOMEM DE NOVE SORRISOS

  


            Parece título de faroeste espaguete, mas é uma história tão real quanto o sol que nos ilumina. E o protagonista não é nenhum tranqueiro malhado com um trabuco fumegante no punho, mas sim o humilde escriba que vos fala, cuja habilidade o destinaria a viver e a morrer pela palavra, tal qual os profetas da anunciação bíblica. Estamos fartos de dramas e sofrimentos, mas abominamos igualmente o riso de bocas banguelas e sua estética de ridículo e miserê.  Então, viva os dentes em todas as suas variantes e cores.

            Como toda criança, tive meus dentinhos de leite, dos quais não me lembro muito, a não ser de quando eles começaram a amolecer e a cair. Isso depois de praticarem o rebolado dentro da boca, aquela coisa divertida que obriga você a usar a língua para colocar as presas no prumo na hora de comer e se não ficar vivo acaba engolindo uma junto com o feijão. Depois elas caem e você as apanha para mostrar pra mamãe como se fosse um troféu. E a mamãe cuidadosa as guarda em uma caixinha com alguns chumaços de algodão, de onde jamais serão retiradas, afinal, de que valem dentes caducos?

            Dentes só prestam quando servem pra chupar cana e arrancar tampinhas de grapetti no lugar do abridor. Era o que eu pensava nos tempos bobos da roça, pois vivia rodeado de banguelas e portadores de dentaduras postiças que davam à fala um jeito pastoso e fanho. Em terra de banguelas ria melhor quem tinha dentes de ouro, como o Tião da Lavra, que se desfez dos naturais para exibir com orgulho o sorriso milionário. Pobre Tião, a vida dele descarrilhou quando uma das putas com quem ele se relacionava fugiu levando sua preciosa dentadura.

            Aí eu completei dezesseis anos e a Gracinha começou a me dar bola, ah Gracinha! Nosso namoro era acanhado, tipo Adão e Eva, sem amasso e cositas así e logo ficou também sem dentes, pois o prático que me atendeu em um momento de aperto decidiu que aquelas cáries que me atormentavam deveriam ser eliminadas mediante uma providencial extração. E foi assim que partiram meus dentes da frente, cinco de uma vez, para o exílio da lata de lixo do dentista, me deixando em um tremendo vazio existencial. Sinceramente, leitora, você não teria caído fora diante de uma cena dessas? No entanto, a Gracinha (e por isso mereceu um lugar nesta crônica), ao me ver com os lábios travados para proteger minha vanguarda murcha, se saiu com esta: que bom, agora vai ficar mais fácil beijar de língua!

            Meu terceiro sorriso veio na base de um roche, que nada mais era do que uma prótese dentária fixada por grampos metálicos. Um hor-ror! Feio, desajeitado, traiçoeiro, pronto a cair no rebolado, e isso nos momentos mais delicados, sem nenhum banheiro por perto pra te ajudar.

            Na sequência coloquei uma prótese fixa, pois os implantes eram muito inseguros na época e custavam o preço de uma casa no lago sul de Brasília. Menos de um ano depois tive que colocar outra, por problemas de adaptação. Tive então um longo período de paz e fotos sorridentes e aproveitei para tirar o atraso, conhecendo outras Gracinhas na universidade.

            Esperava morrer assim, deixando plasmado em minha história breve o registro do meu verdadeiro eu. No entanto, a madame que tão bem se encaixara em minha boca fez default e eu me vi de novo na cadeira do dentista, pronto para um recap completo. Fugi mais uma vez dos implantes, dando preferência a outra prótese, que era só moldar, fabricar e encaixar. Depois mais outra, por problemas de adaptação. E no final disse: são esses dentes que a terra há de comer junto com o resto do corpo.  Mordi a língua.

            Já nem é estética ou vaidade, nem sequer por outras Gracinhas que porventura venham a surgir, apenas a necessidade pura e simples, pois ironicamente a boca é meu cartão de visitas e é da fala que retiro o meu sustento enquanto professor. A capacidade de me expressar com desenvoltura em quatro idiomas diferentes, além da descoberta tardia das virtudes do canto mostrou-me que o valor da vida merece qualquer sacrifício, ainda que seja na forma de vários implantes.

            No entanto, antes de conquistar minha nona estampa, deverei me submeter a um período de transição que implicará no uso de mais uma dentição provisória. E sabem qual é? Sem dramas, senhoras e senhores, sem falsa compaixão (apenas risos sarcásticos de bocas dentadas serão aceitos). Vem aí uma ponte de resina!

©

Abrão Brito Lacerda

30 09 21

           

 

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