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VIDA DE CÃO

 


            O ente mais feliz desta cidade do interior não é um homem nem uma mulher, mas sim um cachorro. Vira-lata ainda por cima, com genes de banzé e pequinês. Pequeno, decidido, confiante. Não rosna nem late, não amola no trânsito, atravessa (sempre) na faixa, conhece as lixeiras do centro como a palma da pata, dispensa más companhias e trata os humanos como seus semelhantes.

            Ao contrário das matilhas que silhonam as ruas noite e dia, o vira-lata é um cão solitário. Tampouco tem dono ou dona, como alguns dos seus irmãos quadrúpedes, que não correm pelos becos, não comem porcaria e não conhecem mais do que a própria varanda ou jardim. Prefere ser dono do próprio focinho.

            É sensato e humilde, ainda por cima. Não mede força com os mandões: se está revirando uma latrina e um colega faminto aparece mostrando os dentes, baixa o rabo e (finge que) vai embora. (Quando o intrometido vai embora, volta à labuta com o mesmo zelo de antes.) Possui habilidades especiais, nada desprezíveis na disputa pelo lixo urbano: abre sacos, caixas e até latas sem se ferir ou espalhar restos pelo chão, pois seu faro apurado o permite localizar rapidamente o prato que deseja. Muito diferente de muitos mendigos e catadores.

            Diante do supermercado, outro instantâneo. Lá está ele, sentado ao lado da portaria, de orelhas em pé e olhos fixos no fundo da loja. São oito horas da noite e os clientes apressados foram embora, assim como os ambulantes e pedintes que se aglomeravam diante da entrada. É o momento em que os entregadores fazem a descarga para o dia seguinte e os odores desprendidos tocam seu olfato como uma ária mortal: ele geme e saliva até a ponta do focinho. Jamais lhe tocará um pedaço daquela picanha que a moça de touca deposita na vitrine refrigerada, nem um naco da linguiça que aquele cara de macacão azul pendura na gôndola! Tem que se contentar com os biscoitos que uma bondosa senhora lança a seus pés na passagem.

            Sempre limpo e presto, com pelo lustroso, sem sarnas e feridas, sua boa saúde é um mistério, uma vez que não há ninguém para cuidar dele. Ou haveria por trás uma alma caridosa, que o acolhe regularmente no retiro dos animais abandonados?  Talvez um veterinário amigo (tão impressionado quanto o autor com sua inteligência de cão) lhe administre regularmente vacinas e vermífugos. Mas o fato é que não precisará da esmola da previdência social, assim como não precisará de aposentadoria. Quando lhe caírem os dentes e o faro não conseguir mais distinguir entre o presunto e a mortadela, morrerá como viveu: livre e sem causar incômodos.

 

©

Abrão Brito Lacerda

16 06 21

 

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