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(Imagem:studentnewsdaily)


            Na fria manhã de Belo Horizonte, dois moradores de rua aquecem-se ao sol leitoso que atravessa as barras de edifícios. Estão lendo o jornal e comentando as notícias, com grande interesse, como se suas vidas dependessem de algum modo de decisões tomadas em Brasília.
            - Tá vendo, aqui?  (mostra com o dedo imundo), estão querendo matar o presidente!
            - E quem vai querer matar um homem santo como ele?
            - Ele não é santo, é contra os aposentados, os índios e os sem-teto.
            O outro mostra com o dedo ainda mais sujo outra notícia popular:
            - Veja aqui: “carreta carregada de cocaína tomba no anel rodoviário e mata cinco.”
            - O presidente agora é caminhoneiro?

            Não é por comandar o país sem freio na língua que o capitão pode ser acusado de caminhoneiro. Muito menos dois sem-teto, va-ga-bun-dos! podem ser tomados como arquétipos da gente brasileira, que ama a pátria e rala na fila para não perder a condução.
            Mas o fato de ler (por que não têm nada mais a fazer?) demonstra sua baixa ignorância e os alinha entre os defensores do meio ambiente, pois usam o jornal como cama e como meio de comunicação.

            Na padaria, a moça do caixa mata o tempo lendo o folhetim. Ela também está preocupada com a situação do país:
            - Estão querendo matar o Bolsonaro!
            - Qual deles?
            - Aqui diz que é um grupo terrorista.
            - Mas, "qual" dos Bolsonaro estão querendo matar?
            - Todos, pai e filhos, na lista negra da organização criminosa!
            (Ela disse “criminosa” torcendo os lábios.)
            - Aonde vamos chegar?
            Não vamos abrir concorrência com os informativos populares, cada um com seus problemas, excluindo os motoristas desta cidade transviada, que uns chamam de loucos e outros de assassinos. Vamos excluir também os maridos chifrados, criminosos e suicidas em igual proporção. Não vamos acrescentar um grama a seu infortúnio, longe disso, nosso objetivo aqui é afirmar que somos a favor da fertilidade.
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            Da fidelidade, melhor dizendo. Do amor amigo e carinhoso de um par de vasos craquelês, como ânforas antigas, resgatadas do fundo lodoso do Mediterrâneo, repletas de vinho e moedas. O fundo dos mares é um testemunho eloquente da fertilidade.
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            Da felicidade, com certeza, real ou ilusória, o que importa, um estado de espírito, o modo como olhas, o mood, absoluto ou relativo, o sorriso, o dinheiro, as férias e o ano sabático, here comes the sun, andar pelas ruas de Pequim e Hanói, de bike, boat ou tuk-tuk, máscaras e capacetes, aos milhares, músicos tocando na esquina, você se aproxima e - stop!
            Os sem-teto celebram a cada manhã o milagre de estarem vivos. Com o repertório de crimes acontecidos durante a noite, não é uma alegria fortuita. Em breve as chuvas da primaveram vão desalojá-los de novo. Precisarão de alguns trocados para a cachaça e o fogo selvagem. 
                   Esta não é uma fábula do vinho tinto.
                                                                     ?

©
Abrão Brito Lacerda
19 07 19

           
           
           
           

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