Pular para o conteúdo principal

JANTAR CUBANO




         Celebrando a cada dia a beleza de ser um aprendiz, encontramos mais interesse nas trocas ordinárias do que nos alarmes falsos dos profissionais da notícia. Quando tudo vai mal, basta inverter a ampulheta para que a areia continue a soprar nos olhos dos incautos. Explosões, ataques com gases letais e lasers intergalácticos cansam até o menino, fã incondicional dos games e dos filmes de ação. Tenho que tirá-lo desse mundo, fazê-lo imergir nas tarefas escolares e nos cuidados com o corpo.
         - Pai, tenho trinta e nove exercícios de matemática para resolver até sexta!
         - Então, vá fazendo aos poucos, tipo dez exercícios por dia.
         - O problema é que tenho que fazer também as outras tarefas.
         - Vida de estudante, rapazinho, quando começar a trabalhar você vai ver.
         - Por que o professor precisa dar tantos exercícios?
         - Para manter vocês ocupados, se não for assim, vocês vão dizer que ele é frouxo.
         - Mas é quase tudo a mesma coisa: potenciação, radiação...
         - Neste mundo, tudo se repete, não tá vendo o burro do presidente que temos?
         - Lá vem você falar de política...
         - A escola é o melhor dos mundos, o único que de fato te deixará saudades.
         - Você tem saudade dos seus tempos de estudante?
         - Só de lembrar que não sentia dores nos joelhos... Naquela época a professora usava uma régua de um metro, mais uma palmatória que ela mantinha escondida na gaveta. E tinha o direito de usá-las...
         E esse era o mais doces dos castigos, pior era impedir a gente de jogar bola durante o recreio. Um dia, ganhei uma bola de plástico como melhor aluno da sala. Pensei nas férias, nas peladas com meus irmãos e primos em cima do estrume seco do malhadouro da fazenda enquanto meu pai saía para ver o gado. Fui estrear a bola no chão de terra batida do pátio de recreação e o brinquedo terminou estropiado, furado, reduzido a uma massa disforme de cérebro de bolsominion.  
         Passei as férias chutando bola de meia pra arregaçar os dedões e montado em jumento, dando beliscão na garupa para vê-lo soltar peidos, tamanha foi minha revolta.
         - Pai, quantas vezes você já assistiu a Blade Runner? Vinte vezes?
         - Não, não foi tanto assim, passou de cinco, mas, com certeza, ainda não chegou a dez.
         Blade Runner é nosso sci-fi favorito, tenho esperança de que desta vez ele possa ir até o final. Quando tinha doze anos, ele fugiu da sala ao primeiro beijo entre o caçador de androides Deckard e a tesuda replicante Rachael.
         - Até eu cairia de amores por essa replicante!
         - Lá vem você falar de...
         - Vai sair da sala?
         - Vou nada! Adoro essa estética cyber-punk, o clima de filme noir, a música de Vangelis e o décor de fallout.
         Saindo da boca de um ado de catorze anos, tais frases são um verdadeiro assombro. Por isso, na escola, onde só se ouve Anita e Pablo Villar e o máximo em cinema é a sessão da tarde na TV, ele é considerado diferentão.
         A diretora reclamou que ele não queria comprar o caderno de vocabulário para o inglês. Ele fala inglês fluentemente, professora, não quer mais saber de o book is on the table.
         - Ele fala inglês?
         - E também um pouco de francês e espanhol.
         Não deveria ter dito isso a ela. Arrependo-me. Certas coisas não podem ser ditas, é melhor escrevê-las na forma de crônica, onde todos pensam que é mentira.
         - O que temos para depois do filme, pai?
         - Jantar cubano.
         - Jantar cubano? O que é isso?
         - As sobras do almoço.
         - Quanto preconceito!
         - Não é preconceito, se fosse jantar japonês ou canadense todos achariam chique, mas não vou ceder a estranhos a honra que posso conferir a um país hermano.
         - Cubanos e brasileiros são hermanos?
         - Pelo menos Lula e Raul Castro sim.  
         - Quem é Raul Castro?
         - Olha, melhor se concentrar no filme, senão vai ter indigestão.

©
Abrão Brito Lacerda
04 07 19
        

        
        

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PAULO LEMINSKI: POESIA DO ACASO

Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:          eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo         não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? ele que cuide de seus assuntos eu cuido dos meus Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).          Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que o artista busca. Mallarmé (vejam minha postagem de 17 de março de 2012 sobre o poema Salut ), o mestre que faz os

TSUNESSABURO MAKIGUTI: A EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE VALORES

                Mais conhecido como fundador da Soka Gakkai, sociedade laica japonesa que atua pela promoção da paz, cultura e educação, Tsunessaburo Makiguti (1871 – 1944) teve uma vida intensa, pontuada por momentos dramáticos. A começar por sua origem, no seio de uma família pobre do noroeste do Japão. Aos três anos de idade, foi abandonado pelos pais após sua mãe tentar suicídio, atirando-se com ele nos braços no mar do Japão. Foi adotado por um tio, com o qual viveu até os 14 anos e, posteriormente, foi morar com outro tio. Começou a trabalhar cedo e, com grande dedicação, concluiu o curso normal, tornando-se professor primário e também diretor de escola, função que ocupou por mais de vinte anos.             Foi das anotações sobre suas experiências didático-pedagógicas que surgiu o seu segundo livro, Soka Kyoikugaku Taikei ( Sistema Pedagógico de   Criação de Valor es ) , publicado em 1930, em parceria com seu amigo e colaborador Jossei Toda.              Os dois prime

IBIRAJÁ

            Ibirajá é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura. Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.             Entre o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o segundo, de temática totalmente diferente.             Vento Sul é um inventário de minha infância. Eu o via co