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BARÕES DO ROCK

          
          Mais do que o ritmo sincopado, a percussão forte, os apelos hedonistas e libertários, o pique juvenil e aquela dose desregrada de insouciance, non sense, sexo e drogas, Rock and Roll é um estado de espírito, um estilo de vida. Talvez nem seja uma escolha, mas sim elemento de identidade que faz o roqueiro possuir o antidoto para a tanta coisa brega que rola por aí, cançõezinhas de dor de cotovelo, falsos protestos, caipiras urbanos e transaltinos, sambas mela cueca, fake funks, toxic axé e rap da rapadura. Porque o rock vem para dizer e diz, dois minutos bastam para que ele deflagre a revolução.
            Inúmeras bandas já desfilaram pelo planeta rock and roll, muitas se tornaram clássicas, reconhecíveis aos primeiros acordes. Uma dessas bandas é o Barão Vermelho, legítimo representante da segunda vaga revolucionária que eclodiu no final dos anos 70 e inicio dos anos 80, que foi a responsável pela consolidação do rock cantado em português. Outros grandes nomes desta época figuram no hall da fama, como os pioneiros Blitz e Gang Noventa, além de Legião Urbana, Ira, Titãs, mas nenhum deles definiu tão bem a identidade rock tupiniquim e o espírito dos anos loucos quanto o Barão Vermelho.
            O Barão era mais do que a presença eletrizante do seu frontman e letrista, o saudoso Cazuza, e isso foi plenamente demonstrado posteriormente. Contudo, em sua primeira fase, foram os versos do poeta exagerado que fizeram a cabeça de jovens e nem tanto, com sua picardia, entrain e ousadia. O Barão soava alegre, uma banda cheia de tesão, lembrando os embalos típicos dos shows-festas do Circo Voador em seus primórdios.
             Que maravilha algumas canções do primeiro disco, lançado em de 1982, como Billy Negão, Certo Dia na Cidade, Rock’n Geral, Ponto Fraco, Todo Amor que Houve Nessa Vida – esta última, com os versos emblemáticos: “Nós na batida / no embalo da rede / matando a sede na saliva”!
            Rock’n Geral dizia que “Rock’n geral é até mais tarde / Sem hora marcada / Armando assim um carnaval / full time”. Esse era o verdadeiro espírito rock’n da banda, como se veria mais tarde.
            O segundo disco, lançado em 1983, mostrou algumas dúvidas, na minha modesta apreciação de fã. A necessidade de dar vestimenta a letras românticas de Cazuza fez a banda perder um pouco do seu pique. No entanto, a canção Pro Dia Nascer Feliz tornou-se o primeiro hit nacional do Barão (inicialmente na voz de Ney Matogrosso). É uma canção que dispensa apresentações. Tem uma letra maravilhosa, versos deliciosos como “no vai e vem dos seus quadris” e ritmo hipnotizante. Perfeita para sua época, um verdadeiro documento histórico.
            A parceria Frejat/Cazuza renderia ainda um terceiro disco cheio, o consagrado Maior Abandonado, lançado no final de 1984. Além da canção título, tão conhecida que seria redundante citar, outros grandes títulos incluem Milagres, Porque que a Gente é Assim e Bete Balanço.
             “Mais uma dose? / É claro que eu tô a fim / A noite nunca tem fim / Por que que a gente é assim? / Agora fica comigo / E vê se não desgruda de mim / Vê se ao menos me engole / Mas não me mastiga assim”. Precisa de uma tradução mais perfeita da folie dos anos 80, a década que para muitos não acabou, tamanha sua influência na história de nossa música e no imaginário nacional?
            Quando Cazuza decidiu sair, muitos temeram pelo futuro do Barão, inclusive eu, fã de carteirinha. Suas letras tinham se tornado a tal ponto associadas à identidade da banda que era difícil imaginar como eles poderiam seguir em frente sem seu crooner e poeta. Seria o fim?
            Por incrível que pareça, foi o verdadeiro começo. Libertados da obrigação de seguir sua figura-chave, os demais componentes deram asas a sua veia roqueira original e se reinventaram, ficaram mais hard, com o acréscimo de percussão e mais uma guitarra, ficaram mais blues, mais diretos, mais rasgados, até mesmo mais politizados nas letras. As composições da banda se diversificaram, seu lirismo ficou menos romântico e mais cru e a voz de Frejat substituindo a de Cazuza acrescentou virilidade e energia ao front. Rock na veia!
            Como o primeiro disco realmente original depois da fase Cazuza só saiu quatro anos depois, isso nos dá uma noção da dificuldade que o Barão teve para se reorganizar. Mas valeu a pena esperar. O disco Carnaval, de 1988, fez os fãs pularem de alegria, com um verdadeiro chute nos culloñes da caretice que se anunciava. O fim dos anos 80 já anunciava a ressaca que estava por vir, os rebeldes já tinham procurado emprego, só os mais recalcitrantes resistiam em seu ideário hippie retardatário. Graças ao Barão, a picardia estava de volta, embrulhada ao som se uma banda de pulso. “Eu que não fumo cigarro porque me faz mal pro pulmão / Mas também não vou viver só de pão pulmann”, cantava Frejat com voz de barítono. Que gag (e nonsense) mais apropriada! Era o Barão que muitos fãs sempre tinha querido ouvir.
            Veio em seguida uma sequência de grandes discos, como Na Calada da Noite (1990), Supermercados da Vida (1992) e Carne Crua (1994), que consolidaram a reputação da banda como praticante do rock duro, misturado ao blues e às baladas. Vale a pena falar um pouquinho de cada um deles, portanto, paciência para um pouco mais de descrição.


            Na Calada da Noite traz títulos como Política Voz, Beijos de Arame Farpado, Invejo os Bichos, Seco. Dá para sentir o som só pelo nome das músicas. Base excelente feita de bateria, percussão e baixo pulsante, guitarra base e guitarra solo, teclados para harmonizar. Um petardo que iluminou os céus do conformismo. E, para fechar, a balada clássica O Poeta Está Vivo, com letra de Frejat e Dulce Quental. Pura reinvenção! 
            Supermercados da Vida é, na minha opinião, a obra-prima da banda, incluindo no julgamento os discos feitos com Cazuza.
            O disco abre-se com Fúria e Folia - que grande título! Com variações de ritmo e uma letra de fuder, desbragada, provocante: “Eu não sou a porca que não quer atarraxar / Nem a luva que não quer em sua mão entrar / Viver é fura e folia rumo ao mágico”. Ainda assim um aperitivo, porque na sequência viriam Odeio-te meu Amor e a sublime Pedra, Flor e Espinho: “Hoje, eu não quero ver o sol / Vou pra noite / Tudo vai rolar / O meu coração é só / Um desejo de prazer / Não quer flor / Só quer saber de espinho / Mas se você quiser / Tudo pode acontecer no caminho / Mas se você quiser / Sou pedra, flor e espinho”. Uma pegada incrível, um belíssimo solo de guitarra pra dizer chega.
            Depois têm os versos lancinantes da balada baudelairiana Flores do Mal, de Frejat e Flávio Marquesini, com direito a gaita blues e interpretação de primeira. Depois, Azul, Azulão, com participação do poeta Jorge Salomão na letra, além de Flávio Marquesini. Bravo! Segue Fogo de Palha, outro blues-balada de tirar o chapéu. Em seguida, a viagem urbana de Fios Elétricos, eletrocutante. Depois a canção título Supermercados da Vida, com ares de rock de protesto. Sombras no Escuro, outra grande canção: “Escuro / É o inesperado pra tudo / Voo cego pra morrer / É um filho no útero com vontade de nascer / É o homem de trinta que não quis crescer”. Que sacada de Frejat e Marquesini! Nem precisava mais, e ainda tinha com Cidade Fria, de novo versos afiados, grande solo de guitarra, interpretação soberba. A Noite não Acabou fazia concessão às baladas melosas (afinal, uma banda de rock toca também para as mulheres). Comendo Vidro dá arrepio na espinha, tamanha a fúria dos versos: “Comendo vidro / Mastigando e engolindo”.
            Obrigado Frejat e companhia! Os amantes da boa música guardarão um lugar especial para esse álbum em suas estantes.
            Carne Crua, o álbum seguinte, vem na mesma linha, com a banda se exibindo em rocks duros, blues e baladas. Destaque especial para Seremos Macacos Outra Vez (“Com Charles Darwin resignado / Voltando pelado / Na contramão”) e Rock do Vapor (“Sou trabalhador / Mas podia ser vapor”). O que será “vapor”? Aposto que é um vetor de boas notícias. São duas canções para serem executadas ao vivo, em meio à farra e ao alarido, bem alto, junto com a galera, como em Rock’n Geral.
            Ver o Barão ao vivo tornou-se uma autêntica celebração Rock. A banda vinha para dizer e dizia, nada de frescura e pastiches – esta não é uma observação casual, a maioria das bandas de rock clássicas que sobreviveram viraram pastiches de si mesmas.
            O Barão evoluiu, mudou, amigos morreram, outros se reagruparam. Fico sabendo agora através da Internet, que a banda prossegue sem Frejat, que se afastou em 2017 para cuidar de outros projetos. Voltarão certamente a tocar juntos, que seja para celebrar o legado da maior banda de roque enrou do Brasil, minha banda favorita.            
            Long Live Barão Vermelho!

Assista ao vídeo homenagem: https://www.youtube.com/watch?v=LbxDY_RzgX0

©
Abrão Brito Lacerda
04 03 19



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