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PEDRO DANDÁ

Personagem e autor.


             Já escrevi duas vezes sobre Pedro Dandá, a primeira no “Conto dos Homens Simples”, que aparece em meu livro Vento Sul, e a segunda na crônica “A Idade do Homem”, aqui neste blog. Consagrar-lhe um terceiro texto é prova de resiliência e longevidade, tanto de parte do personagem quanto do autor. No espelho virtual em que presente e passado se refletem, surgem imagens contrastantes, deslocamentos, a luz e a sombra se tocam na curva de um ângulo reto, tão diferentes e tão próximas.
            Pedrinho teria tido uma certidão de nascimento, como todo mundo. No entanto, quando se decidiu que era tempo de aposentá-lo, foi preciso emitir um segundo registro, com uma idade aproximada. Como nem ele próprio sabe ao certo, perdura a especulação sobre sua verdadeira idade. Ele está acima de setenta anos, sem dúvida, talvez setenta e cinco, algumas pessoas que o conhecem há mais tempo dizem que ele está se aproximando dos oitenta anos.  Isso não parece ter grande importância para ele, perguntá-lo hoje dá na mesma resposta de ontem. O certo é que ele está bem e feliz, a seu modo franciscano, resumido à essência última da existência: o homem só, sem parentes conhecidos, dependente apenas das próprias forças para continuar vivendo. Aqui tenho meus animais, não pago aluguel, ele confessa. O que mais posso desejar?

O cavalo Malhado e um dos cachorros.

            Do remanescente da antiga casa de fazenda onde mora, ele é mais um vestígio, como uma viga ou uma telha, destinado a ser um dos últimos a cair. A casa é simples, mas tem uma longa história, passou por muitas metamorfoses, abrigou gerações ao longo de décadas. Ela já existia quando meu pai comprou a fazenda, em 1960, e foi sendo ampliada com o tempo, de acordo com as necessidades. A cumeeira original foi substituída quando não era mais suficientemente sólida, diversas ampliações aconteceram, com acréscimo de uma sala de visitas, quartos, uma nova cozinha, casinha para o leite (que era onde ficava a desnatadeira, os cochos de leite e o forno com o imenso tacho de cobre onde se fazia o requeijão). A técnica era a mesma: a estrutura de taipa. Pilares de itapecuru ou peroba, estacas de inhaíba entrelaçadas com ripas de coqueiro ou varas, através de uma amarração de cipó caboclo.  Em seguida, a tela cor de madeira era preenchida com barro amarelo, ocre ou vermelho e depois rebocada.

A casa de taipa.

            Posteriormente, ela foi substituída por uma casa de tijolos, construída mais no centro da fazenda; depois essa casa nova foi demolida para dar lugar a outra ainda mais moderna e cômoda. Mas a casa velha resistiu, graças à sabedoria de amputar-se as partes podres para continuar de pé: foi-se a antiga cozinha e a casinha de leite contígua, sobram sala, quartos, cozinha e despensa. Mais do que o suficiente para Pedro Dandá e seus companheiros de penas e pelos.
            Do quintal de antes não resta mais a cerca, o mato invadiu o terreiro, o pasto dos animais se estende até poucos passos da porta de entrada. Galinhas e patas chocas dividem o quarto de arreios com a sela, o cabresto e as esporas. O cavalo Malhado dá sopa nos arredores, roliço como uma salsicha. Que nada! Pedrinho prefere fazer suas jornadas a pé, sem medo e sem pressa. O gado o conhece há muitas gerações: ele tirou leite da tataravó daquela novilha ali, ajudou no parto da bisavó daquele touro acolá. Quando os animais se aproximam, basta ele levantar a vara para eles fugirem em debandada. São bichos bobos, vivem para engordar, procriar e dar lucro ao dono. Pedrinho está sempre no caminho, para lá e para cá, almoçando na casa de um, parando para um dedo de prosa, sem cerimônia.
            Sua aposentadoria poderia ser mais tranquila não fosse um problema que o tem acometido nos últimos tempos de forma recorrente: os ladrões de galinha. A criação modesta sofre ameaças de predadores silvestres e humanos: os saruês (ou gambás) adoram os ovos, os gaviões não dão trégua aos pintos e os bebuns desse e do outro lado do rio ficam de olho em seus frangos e suas poedeiras, dispostos a transformá-los em churrasco. Sem poder suportar mais o prejuízo (e até mesmo para se proteger), Pedrinho comprou uma espingarda.

Chegando em casa.

            Ele vai ao fundo da casa, sai de lá com uma dessas armas que se carregam pela boca e a exibe como um troféu, em meio a esta frase cheia de convicção: comprei com meu dinheiro e agora quero ver aqueles vagabundos virem roubar minhas galinhas. A chumbeira é do tipo coronha, o que na Bahia significa curta, faltando uma parte. Como o que falta é justamente a coronha, temos o paradoxo de uma espingarda coronha sem coronha. No mais, cano, gatilho, vareta, tudo parece em perfeita ordem. Mais uma ressalva importante: a arma está carregada, pronta para uso; no entanto, o gatilho está preso com uma borracha, para evitar um disparo acidental; e o cano está tapado, para que formigas e marimbondos não façam dele seu abrigo. Pedrinho diz que o tiro é forte o suficiente para vazar uma estaca de braúna e, com ingênua transparência, confessa que pagou cinquenta reais pela espingarda. Você acha que foi caro? Pergunta desconfiado.
            Não foi caro de jeito nenhum, Pedro! Você fez muito bem em gastar parte de seu soldo para ter com que se defender. E, se depender das intempéries e do Luz para Todos, terá ainda que desembolsar uns bons trocados para não viver como um homem das cavernas. Nas vésperas do ano-novo, uma terrível tempestade de raios se abateu sobre a região e provocou um curto-circuito que queimou boa parte dos aparelhos eletrodomésticos, incluindo a TV e a geladeira de Pedro. Sobre a TV, ele não lamenta muito, pois o rádio se salvou, mas, sem ter como guardar alimentos, terá que abusar da hospitalidade dos vizinhos. Sugeri que os vizinhos lhe dessem uma geladeira, uma dessas bem simples que alguém tem em casa para doar. Mas já ouvi a contraproposta de um deles: Pedrinho pode muito bem comprar uma nova televisão, afinal ele só gasta o dinheiro da aposentadoria com ração para os cachorros e milho para as galinhas.

As companhias.

            A crer então que Pedro anda juntando dinheiro na poupança. Ainda que seja pouco, é mais do que o suficiente para despertar cobiça neste mundo cheio de maldade. Não vamos dar asa a gente mesquinha, o pobre tem o direito de prover suas necessidades do mesmo modo que o abastado. Na balança do tempo, quando o grande inquisidor cerrar suas portas, a escuridão vencer a luz e os órgãos vitais falharem em sua missão de sustentar o corpo, Pedrinho há de passar como qualquer outro. À beira de um caminho, quem sabe descansando no sofá da sala ao calor das tardes estivais, à vista de Malhado, dos cães e das galinhas, com sua espingardinha de chumbo apoiada nos joelhos - como um soldado disposto a defender sua trincheira até o último minuto.
©
Abrão Brito Lacerda
10 01 19

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