Pular para o conteúdo principal

DE LISIANES & EUNICES


(Imagem: Mundo do Marketing)

            O tempo é um dos deuses mais lindos, segundo a expressão cunhada por Caetano Veloso na canção “Oração ao tempo”. Sendo assim, ele tem a prerrogativa de construir e destruir na mesma medida, dependendo da perspectiva de cada um. Quem valoriza o próprio patrimônio, tem vida ativa e feliz, quem se entrega às circunstâncias, pode sofrer acidente fatal na curva do futuro. Enquanto adepto das formas perfeitas e das boas colocações pronominais e físicas, deixo aqui o meu protesto contra o desleixo de algumas mulheres que conheço.
            A começar pela Lisiane. Quem te viu, quem te vê. Até outro dia, era um verdadeiro regalo para los ojos, combinação perfeita de tornozelos, pernas, quadris, torso e nariz apontando orgulhosamente para o céu; triunfava sem esforço sobre o trabalho modesto de vendedora; dava-lhe caráter e distinção; sonhava e fazia sonhar entre computadores, teclados e mouses...
            Mas eis que desleixou pra valer, e isso no auge dos vinte e poucos anos, a ponto de ter ficado redonda como uma berinjela. Se não se cuidar, ganhará em breve a forma de uma batata.  Por isso, vai aí meu conselho ao vento: não deverias ter dado ouvido aos que dizem que o que conta é a beleza interior e que tudo o mais vá pro inferno; não deverias ter declarado guerra ao espelho e à balança; valorize a porção de beleza universal que há em ti, pois os deuses do Olimpo e os humanos te agradecerão, assim seja.
            Outra que se arruinou por nada foi a Pocahonta (nome fictício). Ela nasceu bonita, como se diz, uma beleza pura do interior. Fez estudos de desenho, Artes Plásticas, dedicou-se ao balé, à zumba e à dança do ventre,  para quê? Acabou se casando precocemente, e o marido, que já não primava pela boa forma quando solteiro, foi engordando sem parar depois do casamento; e a Pocahonta seguiu no mesmo ritmo. Nem uma cirurgia bariátrica (para ele) e os regimes da lua e da tampinha de arroz (para ela)  adiantaram, pois os dois são realmente do tipo glutões.
            Quinze anos depois, a Pocahonta está tão inflada quanto o marido e começam até mesmo a por em perigo os sistemas de transporte! Assentar lado a lado no ônibus, por exemplo, significa ficar um de cada lado do corredor, já que ocupam duas cadeiras cada! 
            Nem mesmo quando o marido ficou entalado em uma cadeira de avião sobre o Atlântico - porque precisou ir ao lavatory, depois de comer cinco sanduíches de atum com maionese antes do pouso - ela declinou do juramento de manter-se fiel na saúde e na doença, na magreza e na obesidade. Depois da forma da batata, o que vem é a do maracujá. Te cuida, Pocahonta...


"Quanto mais velho você fica, mais difícil é perder peso, porque seu
corpo e sua gordura se tornam grandes amigos."

            E agora vejam o caso da Eunice. Esta era torta nos lugares certos, de frente, de lado, de costas, vírgula, parábola, ponto de exclamação. Isso nos bons tempos da universidade, que já vão longe, assim como a discothèque e os cabelos pigmaleão.
            Tantos anos se passaram e a Eunice, que era para estar um bagaço, faz troça da associação dos obesos anônimos, está se lixando para o carteado de sábado à tarde no clube dos aposentados. Nem as dores na coluna a fazem perder o prumo.  
            Ser vovó não combina com ser esbelta, verdade? Os netinhos querem lasanha à bolonhesa e bolo de chocolate com cobertura de caramelo todo fim de semana, não é mesmo? Vovós devem usar vestidos de bolinhas, sandálias vintage e óculos pince nez, blá, blá, blá...
            Não diga nada disso à Eunice. Ela não quer ser chamada de “senhora”, porque isso a faz sentir-se vinte anos mais velha, foge da fila dos idosos, recusa-se a usar os caixas especiais - “Não pago mais barato, então para que servem?” Só não descartou o rico dinheirinho da aposentadoria, a pensão de viúva e a meia passagem em voos domésticos. Afinal, foi por causa disso ela conheceu o atual namorado, um tanguista argentino, lá em Foz do Iguaçu.
            Quem te viu, quem te vê. A Eunice agora está aprendendo a bailar o tango, estuda espanhol e tem planos para voos mais altos. Com cabeça de vinte e o corpo de uma mandioquinha enxuta, que bons deuses a levem.
©
Abrão Brito Lacerda
16  09 17
           


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

IBIRAJÁ

            Ibirajá é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura. Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.             Entre o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o segu...

PAULO LEMINSKI: POESIA DO ACASO

Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:          eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo         não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? ele que cuide de seus assuntos eu cuido dos meus Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).          Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que...

TU ES PLUS BELLE QUE LE CIEL ET LA MER: Un poème de Blaise Cendrars

             Feuille de titre, avec dessin de Tarsila do Amaral           C’était en 1983, je crois. J’étais chez un ami traducteur, avec qui je passais des heures à brûler des joins, essuyer des scotchs et rouler les mots à propos de tout et de rien. Une échappée belle dans sa bibliothèque et j’en suis sorti avec un petit livre de la taille d’un paquet de cigarette, que j’ai commencé à lire au hasard – une page, deux... et, tout de suite, cette merveille : Tu es plus belle que le ciel et la mer Quand tu aimes il faut partir Quitte ta femme quitte ton enfant Quitte ton ami quitte ton amie Quitte ton amante quitte ton amant Quand tu aimes il faut partir Le monde est plein de nègres et de négresses Des femmes des hommes des hommes des femmes Regarde les beaux magasins Ce fiacre cet homme cette femme ce fiacre Et toutes les belles marchandises II y a l'air il y a le vent Les m...