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BACK TO BORGES DA COSTA




         Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, tss... tss... - quem não conhece o poema de Casimiro de Abreu? 
             Escuso os que desejam voltar aos verdes anos e sentir de novo o perfume de um mundo há muito tempo perdido; eu me contento em voltar à juventude, mais especificamente à época em que residi na Moradia Estudantil Borges da Costa em Belo Horizonte. Isso porque a Produtora Almôndega, através de projeto aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura, acaba de lançar uma campanha de financiamento visando a produzir um filme sobre o Borges, como era popularmente conhecido, e suas imbricações com a cultura da cidade e as transformações históricas do país no período 1980-1998.
            O Borges, ao qual viria se juntar em 1985 o MOFUCE, foi um espaço franco, construído e reconstruído pelas gerações sucessivas de estudantes e parasitas que por ali passaram e pode perfeitamente ser tomado como um espelho da época. Cada geração tem sua narrativa, a minha é a da segunda leva, a que sucedeu aos heróis da resistência, responsáveis pela ocupação do antigo hospital em outubro de 1980 e sua manutenção em mãos autônomas diante das sucessivas investidas da universidade para retomar o prédio e reintegrá-lo ao conjunto do Campus da Saúde.
            Um dos requisitos para se tornar borgeano era comprometer-se em defender a casa, o que existia mais na teoria, uma vez que o que de fato pesava na hora de ser aceito pela Assembléia Geral, o Politburo borgeano, órgão máximo de deliberação, era o apoio de uma determinada "ala" ou grupo da casa. Com o tempo e a ocupação de novos setores abandonados do antigo Hospital do Radium ou Hospital do Câncer, a população borgeana cresceu, se diversificou e o resultado foi um melting pot onde havia um pouco de tudo, de caretões a doidões. Estávamos no início dos anos 80 e o Brasil era governado por uma ditadura caquética pra qual a gente não dava a menor bola, queríamos mais era experimentar e viver. O Borges era in, ser borgeano era cool.  
          Jogando os dados da história, eu diria que o Borges foi mais um efeito da bomba de efeito retardado que explodiu no Brasil no fim anos 70 e início dos anos 80, desencadeando a catarse que acompanhou a  saída das sombras da ditadura, caracterizada pela busca furiosa pelo aqui e agora e o precário equilíbrio entre luta engajada e  apelo hedonista. Enfim, os ventos que haviam movido a história em países democráticos sopravam nos tristes trópicos. 
            O Borges retrata um Brasil que, já urbanizado, se tornava metropolitano, com grandes fluxos de jovens pobres ou remediados do interior ou das regiões suburbanas migrando para o centro das grandes cidades, ou seja, para o centro da ação. Esses jovens embarcaram nas promessas da rave-revolução que tomou conta do país com o processo de redemocratização e a nova e abundante oferta de prazeres. Eram herdeiros em primeira ordem dos movimentos sociais armados de matiz estudantil-operário-marxista e dos hippies pacifistas e desbundados. O campo de experimentação era, no seu núcleo mais básico, seus próprios corpos e mentes. Ser careta significava buscar refugio nos fragmentos da velha ordem, não ser implicava em embarcar na trip e ter coragem de romper os próprios limites. 
            Foi uma época de efervescência criativa, sobretudo na música, com o surgimento do novo rock brasileiro, misturando punk e new wave, pau e pândega. Escolhida a trilha sonora, a festa não tinha hora para acabar, quando à rebeldia do ROCK AND ROLL se juntava a inflamável:

TCHAN! TCHAN! TCHAN!... COCAINE...

            As DROGAS merecem um capítulo à parte, a ser narrado com evasivas. Havia abundância delas e a baixo custo, quando não a custo nenhum: maconha, haxixe, cocaína, LSD, temperadas com fartas doses etílicas de tudo que servisse para tontear: vodca, cachaça, uísque, conhaque, cerveja. De preferência adquiridos modestamente através de uma hábil troca de etiqueta de preço no conhecido supermercado Jumbo (atual Extra) localizado ao fundo da moradia – de onde originou esse verbo exclusivamente(?) borgeano: “jumbar”.

SACANALIA JUVENILIA

       Ah, o SEXO! O oloroso, escorregadio e suntuoso tesão do pós-Women’s Liberation Front e pré-aids. Pode parecer sacanalia à primeira vista, mas era apenas juvenilia descoberta, brincadeira, inocente, de crianças crescidas.
         Às trincheiras do amor todos sobreviveram, mas não ao efeito orloff, pois, assim como depois da tempestade vem a enchente, a trip borgeana teve o seu:

DARK SIDE

         Que merece o lugar de epílogo.
         Na viagem para dentro de si mesmo, alguns esqueceram a passagem de retorno, propositadamente ou não, outros chegaram até mesmo a se lançarem debaixo do trem, pondo fins trágicos a existências por vezes carregadas de solidão e angústia. São para eles as últimas palavras: a queda, a corda, o ônibus...
         Lençóis brancos cobrem os corpos dos que ficaram no caminho. E os versos do poeta borgeano Raimundo Nonato como lápide:

            “Para que servem os HERÓIS
            Senão pra o povo carregá-los
            Em cordas e lençóis?
            
            “Para que servem os GIRASSÓIS
            Senão para brotarem
            Na cova funda dos heróis?”

©
Abrão Brito Lacerda
12 11 16


Comentários

  1. Fiz parte dessa história. O texto aborda os mais variados contextos da época, tendo a Moradia como cenário de análise. Gostei. Habitar, viver e conviver no Borges, permite a produção de textos os mais variados: crônicas, contos, poemas, ficção, estudos socio-economico-politico-cultural etc. Parabéns pela capacidade elucidativa de um momento tão
    rico e contraditório vivido por nós. Parabéns também por fechar com o poema do querido amigo e poeta Raimundo Nonato. Abraço.

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  2. Fiz parte dessa história. O texto aborda os mais variados contextos da época, tendo a Moradia como cenário de análise. Gostei. Habitar, viver e conviver no Borges, permite a produção de textos os mais variados: crônicas, contos, poemas, ficção, estudos socio-economico-politico-cultural etc. Parabéns pela capacidade elucidativa de um momento tão
    rico e contraditório vivido por nós. Parabéns também por fechar com o poema do querido amigo e poeta Raimundo Nonato. Abraço.

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    Respostas
    1. Boa tarde, Vanita. Um pouco atrasado na resposta. Fico feliz que meu texto tenha aportado algo sobre essa história tão rica, como você mencionou. Já publiquei várias coisas sobre o Borges e volta e meia sinto-me inspirado a criar mais. O Borges está presente em meu livro O Amor e Outras Tolices, no conto Aranzel de Desconcertos e permeia algumas outras histórias que têm como cenário a BH dos anos 80. Busque aí no Google se tiver interesse. Um abraço fraterno, tudo de bom.

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  3. Em que fase você morou no Borges?Um abraço, vanita.

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    1. Vanita, morei no Borges (ou "na" Borges como preferiam alguns) entre 1985 e 1988), logo depois da ocupação da Ala das Voluntárias

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