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STÉPHANE MALLARMÉ: SALUT

          
O Poeta Stéphane Mallarmé em sua sala de estar, onde costumava receber os amigos.

         Os versos que ilustraram certa vez o topo deste blog:

Une ivresse belle m’engage
Sans craindre même le tangage
De porter debout ce salut,

são do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842 - 1898), nome fundamental na história do gênero e um  dos autores da minha predileção.
         Antes de maiores comentários, gostaria de apresentar o poema. Não exijo que o leitor saiba francês, pois vou tentar “explicá-lo”. Se souber, melhor:

SALUT

Rien, cette écume, vierge vers
À ne designer que la coupe;
Telle loin se noie une troupe
De sirènes mainte à l’envers.

Nous naviguons, ô mes divers
Amis, moi déjà sur la poupe
Vous, l’avons fastueux qui coupe
Le flot de foudres et d’hivers;

Une ivresse belle m’engage
Sans craindre même le tangage
De porter debout ce salut

Solitude, récif, étoile
À n’importe ce qui valut
Le blanc souci de notre toile


         (Uma tradução livre pode ser encontrada no final desta postagem, assim como uma “transcrição fonética” do poema.)
         O poema é uma “saudação”, tradução exata de Salut. Mas pode ser também um “brinde”, que é o que o poeta faz a todos os seus convivas. E o poeta a inicia dizendo que não há “Nada, apenas a espuma e o verso virgem” (Rien, cette écume, vierge vers),  designando a taça, a coupe. O verso vai, portanto, nascer da espuma do copo (cerveja?) sobre a folha de papel. A espuma do copo se converte logo depois em espuma do mar, onde são avistadas “tropas de sereias” (Telle loin se noie une troupe / De sirenes mainte à l’anvers).
         A segunda estrofe é a descrição da viagem (Nous naviguons, ô mes divers amis), o bardo na popa e seus companheiros à frente, rompendo as ondas em meio a tempestades invernais. Então, ele é tomada de uma “bela embriaguez” (Une ivresse belle m’engage) e nem sequer se importa mais com o balanço do barco, quando se ergue e oferece sua saudação, seu brinde, que é o ponto alto do poema, sua culminação, representada pelo gesto de erguer a taça:

Une ivresse belle m’engage
Sans craindre même le tangage
De porter debout ce salut

Paris no final do século XIX.

          Assim que nos saúda em pleno mar da embriaguez, ou da inspiração, o eu lírico reflui para a solidão do recife, da estrela (Solitude, récif, étoile) e da branca folha de papel em que escreve (Le blanc souci de notre toile), indicando a contenção e o aspecto racional que governa sua poesia.
             Um movimento vertiginoso, onde não faltam as batidas das ondas (poupe, coupe), as tempestades e os relâmpagos (foudre) redunda no naufrágio (solitude, récif, étoile)  e o manifesto de frustração final, composto pelos dois últimos versos (À n’importe ce qui valut / Le blanc souci de notre toile). Frustração em relação a quê, em se tratando de uma obra tão bem acabada? Uma resposta possível é que o poeta não pode, finalmente, apreender toda a poesia, mas apenas um fragmento desta. O objeto de sua obsessão se esvai assim que ele deita sobre o papel a última palavra.
      Trata-se de um poema de mil leituras, dissecado a torto e a direito ao longo de quase um século e meio desde sua publicação. Se começássemos pelas múltiplas interpretações, não conseguimos nem sequer lê-lo, pois nos perderíamos na metafísica dos estudiosos. Quanto a mim, modestamente vejo Mallarmé despido de mistério. Como amante da boa poesia, entendo que o essencial é usufruir de sua poesia, que é de fato uma meta-poesia, uma poesia sobre a escrita poética, e por isso mais livre de ser apreciada.
         Agora, para os que me leram até aqui, segue uma tradução livre do poema:

SAUDAÇÃO

Nada, esta espuma, verso vírgem
A designar apenas a taça;
Quando, ao longe, afoga-se um bando
De sereias ao inverso.

Nós navegamos, oh! meus muitos
Amigos, eu, na popa
Vocês na frente suntuosa que rompe
O fluxo dos raios e dos invernos;

Uma bela embriaguez me toma
E não temo nem mesmo o balanço (do barco)
Ao erguer-me para (oferecer) este brinde

Solidão, recife, estrela
O que quer que tenha resultado
Da inquietude desta folha branca.
 
Em ação, recitando Salut em algum sarau.


         Reluto a oferecer uma “transcrição” fonética do poema, pois isso parece demasiadamente grosseiro, sobretudo porque não há como representar certos sons do francês com simples letras. Perdoe-me o leitor pelo mau gosto, mas o faço com a intenção de ajudar a compreender a música do poema, seu elemento essencial:

SALI

RRIAN, CETEKIME, VIERGEVER
A NE DEZINHÊ QUE LA KUP
TEL LUAN SE NUÁ IN TRUP
DE SIRRÉN MANTALANVER

NU NAVIGON, Ô ME DIVER
ZAMI, MUÁ DÊJÁ SIR LA PUP
VU LAVAN FASTIÊ QUI KUP
LE FLÔ DE FUDRE Ê DIVER

INIVRESS BEL MANGAGE
SAN CRANDRE MÉM LE TANGAGE
DE PORTÊ DEBU CE SALI

SOLITID, RÊCIF, ÊTUAL
A NAMPORT CE QUI VALI
LE BLAN SUCI DE NOTRETUAL.

          Meu salut ao eterno Stéphane, artesão solitário das palavras!
©
Abrão Brito Lacerda



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