Recebi
o livro da Jô ontem, abri e li todo de uma vez. Hoje deito estas impressões de
leitura, ao calor dos batimentos afetivos que sua obra singular desperta. A Jô é
uma autora pouco conhecida, como eu (rerere) - antes de encontrar alguém que
fale dos meus livros, falo dos de outros escritores, célebres ou não, pois sei
que encontrar os leitores, ainda que em pequeno número, constitui a maior
recompensa do escritor, a oportunidade de ouvir um comentário, uma maravilha, e
ser objeto de uma análise, o sétimo céu.
A
Jô em questão é a Josefina Mª Murta Aranã e seu livro é o Cabaré Nômade, uma brochurinha simpática, estilo mimeógrafo,
recheada de ótimos textos. Confessadamente publicada “sem registro na
Biblioteca Nacional e sem revisor oficial”, seu livro vai além do que ela
imagina. Ela o queria um livro de humor, mas trata-se muito mais de uma obra de
amor.
Um
cabaré sério, com um propósito não explicitado por esta autora que parece ter
horror às convenções, mas claramente legível nas entrelinhas. Por que
indagar-se sobre a eternidade, se mal sobra tempo para a próxima refeição?
Montado
com a linguagem da desconstrução, própria da maneira anarquista de ver o mundo:
nada resiste ao poder solvente dos discursos justapostos, ao sabor da analogia
livre – qualquer ideia se associa a outra, desde que haja um gancho possível.
Uma linguagem da fala, do discurso desenfreado dos artistas de rua. Contudo
guardando este alto propósito: romper a seriedade bem pensante e instaurar uma
nova maneira de ver/ler o mundo. E um alvo preferencial e recorrente: as instituições,
as convenções e a “ordem” social manifesta em modos coletivos de ver, sentir e
pensar.
Há
várias referências de natureza psicológica, espiritual, filosófica e literária,
muitas das quais me escapam. Algumas são mais facilmente legíveis, como o eixo que
engloba o ocidente e o oriente, Deus e Buda.
A
religião manifesta um desejo de desapego face a um mundo materialista e
mercantilista, um ideário de natureza hippie. O eixo filosófico e psicanalítico
responde com a ironia e a dúvida ocidental, um núcleo de ideias díspares e
conflitantes, que constroem aos trancos e chistes um equilíbrio precário. A
autora demonstra ter recebido belos influxos do budismo, do qual pode ser
percebida essa impermanência que permeia seu texto matamorfósico. No entanto, o
Budismo é visto com o olhar relativista e irônico do ocidente, quando o Grande
Veículo do Budismo Mahayana integrou esses princípios aparentemente excludentes
na universalidade dos Dez Mundos a partir de, pelo menos, Tiantai, no século VI.
O conflito entre a unidade e o todo leva à abordagem dissoluta e desintegradora.
Além
dessa busca de sentido (espiritual e filosófico), sobressai-se o tom erótico e
hedonista de tonalidade zen hippiana. A riponga Serafina Zen é interpelada por
uma amiga desatinada (posteriormente entregue aos tigres das montanhas em uma
estranha causalidade em forma de troca de maldades), que a qualifica de nada
menos do que de: “estruturalista, intelectual, fenomenóloga, epistemóloga,
psicanalista, intelectual”. Convenhamos que é demais para qualquer um(a), até
mesmo para uma palhaça assumida.
Em
contrapartida, ela exibe flertes eróticos bem explícitos, equilibrando o
intelectualismo com a sensualidade. Talvez ela não seja tanto assim a palhaça,
mas a maîtresse de um cabaré desconstrutivista.
Jô
exibe excelentes qualidades de escritora, em passagens como entre as páginas 30
e 33, que começa no tom confessional presente em todo o livro, desvela em
seguida uma biografia hippie e intelectual bastante hilária, flerta com o
erotismo, integrando narrativa e diálogo, e encerra a possível missiva em tom
poético.
Outro
aspecto interessante é a forma como a autora constrói referências do mundo a
partir de rótulos, etiquetando figuras históricas, produtos, lugares,
referências sentimentais e literárias. Este é o lado do mundo dissoluto. No
outro extremo subsistem a psicologia e a filosofia, tratadas com notório
sérieux e certo gosto scholar, praticamente imunes às descomposições textuais.
Em
síntese: um livro original e gostoso de ler, tão atraente em sua simplicidade que
desata nossos partis pris e nos induz a soltar algo além da imaginação: o
prazer de ser, agora.
©
Abrão Brito Lacerda
25 07 19
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