Ibirajá
é uma vila do município de Itanhém, no Extremo-Sul da Bahia. Fica às margens do
Rio Água Fria e possui um lindo sítio, entre montanhas e campos de verdura.
Quem ali morou no auge de seu progresso, nos anos 1960 e 1970, impulsionado
pela extração de jacarandá na mata atlântica e o garimpo de águas marinhas nas
lavras do Salomão, jamais esqueceu. Era um lugar primitivo, onde se misturavam
baianos, capixabas, libaneses e italianos. O orgulho nativo continua em alta
com os atuais moradores, que mantêm um ativo grupo no Facebook.
Entre
o Ibirajá e as Fazendas Reunidas Coqueiros, localizadas a 9 km a jusante do Rio
Água Fria, passei minha infância. A força telúrica da visão infantil e a poesia
intensa dos eventos nascidos da vida bruta de antanho inspiraram meu livro
Vento Sul, que agora ganha um novo interesse, no momento em que publico o
segundo, de temática totalmente diferente.
Vento
Sul é um inventário de minha infância. Eu o via como uma crônica de família,
afinal éramos um grupo familiar de proporções impensáveis hoje (pai e mãe, onze
filhos, mais um tio e um primo, acrescidos de vários empregados), vivendo em
uma casinha de taipa que não parava de crescer. Tudo muito isolado, viagens a
pé e a cavalo, a civilização chegava pelas ondas incertas do rádio de pilha.
Ao
trilhar vida própria, como todas as obras publicadas, o livro amealhou leitores
apaixonados, que se identificaram com sua atmosfera onírica e confessional, com
seus personagens originais e hilários, meninos sujos e traquinos, bêbados e
valentões, seus casos do arco da velha, sua evocação de um mundo de gestos e
palavras que desapareceu para sempre. Poucos, mas felizes cúmplices da arte
ingrata de escrever e esperar ser reconhecido.
O
que não desapareceu foram as ladeiras – as de antigamente não tinham calçamento
e escorregavam feito quiabo na enxurrada -, a igreja matriz, altiva com sua
torre pairando a dezenas de metros sobre a praça principal, a feira de sábado
de manhã e alguns moradores prosaicos que, como eu, não pretendem morrer tão
cedo. Sei, pelos comentários publicados, que a venda de seu João Souto ainda
está de pé, oferecendo biscoitos e salgados incomparáveis e que Mimi, sósia-mor
de Raul Seixas (sem o violão) ainda desfila pelos mesmos logradouros.
Corrijam-me
se estou errado, mas, da família Souto ninguém se casou. Que memória deve ter
essa gente! Melhor do que a minha que, por falha, vale-se da ficção e da
invencionice para por no lugar o que não mais está.
Capa do meu livro Vento Sul, com histórias de Ibirajá e do vale do Rio Água Fria. |
A
vendinha de doces da Dona Meza, ao lado do mercado, foi-se há muito tempo. No
entanto, foi lá que eu engordei vários quilos comendo geleias e pirulitos. A
venda de Mário Guerra (e do saudoso amigo, seu filho Carlos Guerra, que homenageei
ao dar o nome de Carlos Boaventura a um dos narradores do meu novo livro, O Amor
e Outras Tolices) também não existe mais.
Ah,
os Zuchettos (é assim que se escreve?) também conservam a fazenda na chegada do
Ibirajá. Eram eles que tinham os mangueiros de aluguel onde se soltavam os
animais para o pernoite. Meu pai chegava na caída da noite e saía ao primeiro
canto do galo. Minha mãe me fazia pular da cama cedinho para ir buscar a
montaria, que tinha passado a noite descansado à beira do rio. Chegava, pegava
o cavalo, pagava e ganhava um pedaço de polenta que eu saía comendo enquanto
puxava o cavalo rua afora.
Do
outro lado da estrada, ficava a fazenda dos Marufs. Italianos e libaneses,
velando como arqueiros às portas do “Jaquetozinho com açúcar”, como costumavam
dizer alguns moradores. Você tava em Medeiros Neto ou Itanhém de viagem e
chegava a hora de voltar para casa. Para casa, não, para o “Jaquetozinho com
açúcar”.
Na
época em que eu nem sabia onde ficava no mapa Líbano ou Itália, já tinha uma
grande atração por esses dois países. Eles nos ofereceram muito, contribuíram como
poucos para dar ao Brasil a identidade que tem hoje. Não vou falar da pizza e
do pão árabe, mas de uma coisa muito mais gostosa. Com perdão da palavra, vou
falar de... mulheres!
À
doce tez morena das baianas vieram somar os olhos de mil e uma noites e as
pernas incomparáveis das descendentes de Sherezade. As italianas temperaram o
ragu com cabeleiras loiras, peles brancas acetinadas e olhos de quartzo e
alexandrita.
Naquele
chão de terra e lama, era um luxo de que ninguém dava conta. Como não dava
conta de tantas outras histórias que o Ibirajá guardaria em suas ruas e casas
humildes de gente simples e trabalhadora, que eu tive a sorte de captar nas
páginas do livro.
Para
saber mais, leiam, que, de graça, só esta crônica.
©
Abrão Brito Lacerda
27 08 19
Lindo demais. Passei minhas férias na fazenda do meu pai Maruf. Obrigado.
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