Falarei do acaso para falar de Paulo Leminski (1944 – 1989), um dos poetas modernos que mais admiro e que leio com mais prazer. Pretendo transmitir um pouco da fruição que sinto ao ler seus poemas, como, por exemplo, o prazer do inesperado:
eu ontem tive a impressão
que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos
quem sou eu para falar com deus?
ele que cuide de seus assuntos
eu cuido dos meus
Você achou o poeta petulante demais? Ora, ele está apenas fingindo uma humildade que não possui, pois, enquanto artista, deve buscar o absoluto, o não dito. Deve rivalizar-se com Deus (seus assuntos são tão importantes quanto os do Criador, ora bolas!).
Acadêmicos e gente que adora esfolar o cérebro dirão que o acaso não existe, mesmo na arte, que tudo é obra de saber e técnica, etc., etc. Mas apreender o acaso é tudo que o artista busca. Mallarmé (vejam minha postagem de 17 de março de 2012 sobre o poema Salut), o mestre que faz os eruditos caírem de joelhos, já ensinou há um século e meio em um célebre poema que Un coup de dés n’abolira jamais le hasard (Um lance de dados jamais abolirá o acaso). Mas o poema de Mallarmé só é acessível a quem conhece bem o francês, voltemos ao Leminski:
parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta
O acaso é o que não está no script, o que rompe a fórmula. É o produto de um átimo, que fica para sempre. Capaz das combinações mágicas que fazem a poesia habitar a palavra, mesmo nas coisas mais prosaicas:
minha mãe dizia
- ferve, água!
- frita, ovo!
- pinga, pia!
e tudo obedecia
Enquanto poeta contemporâneo, pós modernismo, surrealismo e tantos outros ismos, Leminski tem uma natureza essencialmente irônica:
ameixas
ame-as
ou deixe-as
(Aos desavisados, se é que há algum por aí, advirto que este poema parodia o slogan dos militares, no período da ditadura e da repressão: “Brasil: ame-o ou deixe-o”). Eu prefiro as ameixas e, aos milicos: - mamonas!
Mas Leminski sabe bem depurar sua ironia através do humor, forma mais avançada do movimento do espírito, que permite alcançar um estágio de equilíbrio, próximo à superfície, enquanto a ironia tende ao extremo externo em sua agressividade, que pode levar à indiferença e à destruição.
É o humor que permite atenuar a sátira:
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência
Desejo tudo ao bom Leminski, menos que ele veja “tudo em sã consciência”, pois isto significaria perder suas combinações esdrúxulas, inesperadas e subversivas e voltar à chatice que é o dia a dia e o mundo do trabalho.
A brevidade é um dos aspectos que mais aprecio na poesia de Leminski, coisa que ele buscou no concretismo e no haicai como demonstra a história das ameixas acima e esta pequena jóia, da qual é sujeito a rainha do rock brasileiro, Rita Lee:
A síntese é para mim fundamental na arte da palavra, daí porque escrevo sobre poesia, embora pessoalmente pratique a prosa, publicada através de contos, crônicas e artigos presentes neste blog.
O acaso é um “affaire” de loucos ou desajustados. Tal qual o humor. Em que grupo está o poeta? – Vamos ouvi-lo:
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
O poeta é a principal vítima de seu humor, como tem que ser, pois no humor as piadas que fazemos acabam sendo sobre nós mesmos. Vejamos abaixo:
O pomposo filósofo, que se sentou contemplativamente sobre uma pedra à beira mar, foi varrido pela onda – “mar pra tudo quanto é lado” – e provavelmente acabou com a cara na areia. O natural sobrepõe-se ao humano, perfazendo o movimento duplo: de cima para baixo – o humano por terra, convertido em objeto da circunstância e de baixo para cima - a onda sobe, varre a pedra e o mar se converte em sujeito da circunstância.
O pretensioso varrido pela pedra, poderia muito bem ser o próprio poeta.
Poeta de verdade tem que ser um sem teto da palavra, aceitar sua condição marginal (claro, enquanto todos estão cuidando do trabalho que faz girar a roda do mundo, ele se ocupa de fantasias), talvez uma classe abaixo ainda da do louco da rua.
Após todo este blá-blá-blá, momento de comentar um dos poemas leminskianos de minha predileção:
a história faz sentido
isto li num livro antigo
que de tão ambíguo
faz tempo se foi na mão dalgum amigo
logo chegaremos à conclusão
tudo não passou de somenos
e voltaremos
à costumeira confusão
Que “marravilha”! Há uma bela ressonância do “Samba do crioulo doido” neste poema, mas é mais filosófico, contemplando nossa incapacidade de explicar em contrapartida ao absolutismo do poema, que demonstra (com palavras, ritmo e som) ao invés de explicar.
Admiro este poema desde os tempos em que esquentava o assento das aulas de história na Universidade Federal de Minas Gerais, embora não o comentasse em voz alta, já que, naquela época (e creio que em certa medida até hoje) defendia-se o caráter “científico” das ciências sociais, inclusive a História.
O livro de história do qual fala o poema perdeu-se casualmente na mão de algum amigo. O poema (realizado com o artifício do arranjo bem humorado dos vocábulos) triunfa sobre a História, ciência que pretende explicar. Alguém duvida? Admito opiniões divergentes, mas sempre estive do lado do poema, do acaso.
E não é que, outro dia, conversando com um professor de história de cursinho, ele me disse que “a História explica, permite ter uma visão avançada sobre o mundo”? Quando recitei o poema acima, o homem ficou indignado, quis sacar a espada e desafiar-me em duelo! (Nem disse a ele que sou também professor de história de formação. Tampouco disse que o Leminski foi também professor de história em cursinho. Preferi deixá-lo em seu pequeno pedestal).
Ah, o humor. Por trás do riso, estimado leitor, esconde a lágrima. O notável poeta Patativa do Assaré (corra para pesquisar algo a respeito dele, antes que o céu caia sobre sua cabeça!) dizia em sua linguagem simples que “pra sê poeta devera, precisa tê sofrimento”. Leminski (que sofreu barbaramente com uma cirrose hepática que o levou à morte) não é exceção:
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
O sofrimento nos ensina sobre as coisas mais profundas, caso contrário, seríamos mera superfície, sorriso de publicidade e cultura de novela. Jamais atingiríamos o estágio do poema, ao qual cedemos a última palavra:
Eu
quando olhos nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
este poema me olha
∑
Legal. Fui fazer uma pesquisa escolar sobre esse tipo de poesia e acabei gostando muito das do Paulo Leminski. Obrigado essa página ajudou muito. :)
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