As
palavras têm cor, peso e sabor. Têm também suas histórias. Mas, em um universo
de milhares de palavrinhas ou palavrões, das preposições aos substantivos,
passando pelos advérbios e os verbos pretéritos, não nos damos conta da vida
que pulsa por trás de cada uma. Elas surgem e desaparecem, alimentam os livros
e as ilusões e dão estofo aos dicionários. Ainda que tivéssemos uma memória
organizada como uma planilha excel, un hard disk ou um app, um glossário de impressões
afetivas, não bastaria. É preciso ainda inventar e reinventar, como o
substantivo “idioteza” que invento agora para designar a mistura de idiotice
com esperteza.
Que
as palavras vivam como testemunhos de uma época, respirem o ar da atualidade e
não se transformem em ruínas ou alimento para traças em alguma biblioteca.
Assim, antes de lançar a última pá de cal e liberar espaço no driver, apresento
este pequeno glossário de palavras ou acepções que antes se limitavam ao espaço
da memória.
GALINHOTA: ou carrinho de mão. Na fazenda onde
me criei, tinha uma galinhota de metal com uma marca estampada na caçamba que
muito intrigava a nós, meninos. Lia-se: “Formiga Minas”. Qual era a relação
entre formiga e galinhota? Para nós, o nome deveria ser galinha, pois o
carrinho se parecia com uma, tinha dois pés e tinha nome parecideo. Só
depois de muito tempo fomos entender que Formiga era uma cidade de Minas.
ALMOFARIZ: Fiz questão de procurar no pai dos
burros, ou seja, no Google. “É um utensílio que serve para moer
pequenas quantidades de produtos, por vezes misturando vários ingredientes,
também chamado pilão ou moedor.” Ou seja, o nosso socador de alho. Miha mãe
perguntava: onde está o almofariz? A palavra não teria sido guardada se não
fosse pelo som. E pensar que foi trocada por uma perífrase!
MÁQUINA DE ESCREVER: objeto pré-cambriano que
permitia a seu usuário – um datilógrafo – produzir textos, tabelas, etc –
através de um teclado. Deu origem ao verbo datilografar. Hoje pode ser
encontrada em museus e em algum brechó do edifício Maleta em Belo Horizonte.
DATILOGRAFAR: do gredo “dáktylos”, “dedo” + “graphein”, “escrever”, é o ato de
escrever à máquina. Era, porque as maquinas foram substituídas pelos
computadores e o verbo passou a ser “digitar”. Curiosamente, digitar vem de
“digitus”, que é dedo em latim. Enquanto outras línguas, como o inglês (type),
francês (frapper) e espanhol (teclear) mantiveram o mesmo verbo, nós nos
“modernizamos. É o nosso desapego às tradições, somado ao afã de transformar
tudo em ruínas o mais rapidamente possível.
TEXTO: uma palavra rara desta seleção. Um
texto era uma tampa de panela, geralmente fina, como as de alumínio ou esmalte,
comuns antigamente.
PIREX: um pires. O nome vem da marca de
utensílios de vidro ultra-resistentes, que incluía pratos, xícaras, bandejas,
formas e tigelas. Pires tinha que ser pirex e pronto.
PUBA: é a massa da mandioca fermentada,
utilizada na confecção de bolos, biscoitos e beijus. É feita com mandioca
descascada e posta em um cocho de madeira com água para “pubar”. Enquanto a
goma pode ser seca e guardada durante muito tempo, a puba deve ser usada ainda
fresca, no que resultada o melhor bolo de “aipim” que existe.
TANGER: por para correr um animal, expulsá-lo.
Tanger as galinhas quando estão dentro de casa, tanger os porcos do quintal.
Significa também fustigar o animal ou golpeá-lo: tanger os jegues para que
andem mais rápido.
RODA, RELHO, BOLINETE: três partes que compõem
o conjunto da roda de ralar mandioca para fazer farinha. A roda possui uma
ranhura por onde passa o relho, feito de couro, que transmite o movimento ao
bolinete, uma casinha onde a mandioca é ralada. É operada por dois homens, cada
um de um lado, fazendo girar uma manivela.
PSÁ-PSÁ: um dia os meninos passam a se
interessar por aquilo e começam a aprender um monte de nomes associados,
verbos, adjetivos e interjeições. Psá-psá era uma forma codificada de falar de
sexo sem se deixar notar. Geralmente, fazia-se acompanhar de um risinho
irônico.
LANCE: “dar um lance” é uma expressão que
nasceu com a minissaia. Quando a garota se inclinava um pouco demais, sentava-se
sem a devida precaução, subia uma escada ou simplesmente levantava os braços,
podia "dar um lance". Nessas ocasiões, a galera exclamava:
"Brahma na jogada!"
BRAHMA NA JOGADA!: teve como origem um
conhecido narrador de futebol dos anos 70. Para apresentar um convidado,
comentar um lance ou anunciar os comerciais, ele repetia o bordão: “Brahma na
jogada!”. Caída no gosto popular, a frase passou a designar qualquer coisa
interessante que estivesse acontecendo, por exemplo, um "lance".
CAÇUÁ: esta existe nos dicionários. Trata-se
de um cesto grande, comprido e com alças resistentes, geralmente feito de cipó,
que é amarrado de cada lado de uma cangalha e serve para transportar gêneros.
Com cara de caçuá é como você fica depois de dar uma grande mancada.
BUTE: a coisa mais amarga que existe, uma raiz
que trata todos os males em uma só dose, pois quem experimenta não tem vontade
de repetir.
AZEITE DOCE: o mesmo que azeite de oliva.
Antigamente, era também usado como remédio caseiro, na composição de unguentos
e garrafadas.
SEBO DE CARNEIRO: usado para untar os laços de
couro e dar-lhes maior maciez e resistência. Os melhores paus de sebo também
levavam sebo de carneiro. Ele é mais grudento que o Justin Bieber e não se
solta nem com reza braba.
RURAL: Um carro utilitário antigo, fabricado
pela Willys. Nas estradas de terra, com buracos e atoleiros à foison, só
passavam mesmo jeep e rural. Ou carro de boi, que era o socorro da época.
Quando a rural ou o jipe atolavam, chamavam o carro de boi para puxar.
JUMBAR: um verbo que nasceu de um insuspeito
substantivo concreto e arquitetônico. Nos fundos da Moradia Borges da Costa em
Belo Horizonte, havia o supermercado Jumbo, o maior da cidade, fonte dos
desejos de todos os estudantes. Na falta de dinheiro, o jeito era
"jumbar" alguns produtos, trocando as etiquetas. Alguns jumbavam até
mesmo sem etiquetas. Acho que foi por isso que inventaram o código de barras.
DUNGAR, DUNGUISMO: Depois das decepções de
1982, o futebol brasileiro retrocedeu para o estágio das retrancas tipo
europeias e um jogador se tornou símbolo daquela estratégia pobre e seus
resultados medíocres. O dunguismo caracterizou Brasil da transição para o
governo civil, com seus correlatos, o peleguismo e a caretice.
FOCAR: declaro desde já a defuntez do verbo
focar, que copiamos descaradamente do inglês e que hoje serve para designar
quase tudo em português. Focar o texto, focar a atenção, focar no foco, ser
focado e fazer coisas focadas, como esmagar sorvete na testa. Não demora a sair
de foco, ser trocado por outro neologismo.
©
Abrão Brito Lacerda
19 04 17
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