Tínhamos que
nos perfilar no pátio da escola e cantar “eu te amo, meu Brasil, eu te amo; ninguém segura a juventude do
Brasil”, depois do hino nacional. O lugarejo não tinha calçamento, mas ser professor ainda era alguma
coisa, a gente dizia “sou aluno da Dona Antônia”, com uma ponta de orgulho.
Para as crianças, aquelas frases exaltadas evocavam alguma coisa a que eles pertenceriam, um lugar chamado
Brasil; muito diferente, uma espécie de sonho.
Jogar bola na hora do recreio era
bom demais. Difícil era ter a bola, as de plástico se desgastavam rapidamente sobre o piso de argila batida. E todos eram pobres, quase ninguém podia ter uma. Então, valia
bola de meia e algumas unhas do dedão arrancadas. Alguns usavam congas, outros chinelos de dedo, mas na hora de futebol valia a igualmente, todos de pés no chão.
Dona Antônia usava régua para
mostrar os apontamentos no quadro e também para dar bolos, meia dúzia para
faltas leves e uma dúzia para as mais graves. Casos excepcionais eram julgados,
conforme a necessidade.
- Puxou o cabelo da colega!
- Estende a mão!
Pá! Pá! Pá!
Os colegas contavam “um... dois...
três...”
- Escondeu a régua da fessora!
Duas dúzias de bolo, mais castigo.
O desfile de 7 de Setembro era a principal atração do calendário escolar. só superada pelo circo, que passava de vez em quando. A vida se
dividia entre escola, banhos de rio e brincadeiras de “salve-ronda” à noite.
E passava muito rápido também, embalada pela boa música e aquele
sentimento místico-hippie que pulsava com pleno vigor nos meados dos anos 70,
uma coisa que cresceu em tamanho e conteúdo até virar um movimento chamado
poesia marginal:
a palavra na ponta da língua
o sonho de penélope
numa piscada safada
mato a pulga atrás da orelha *
escreveu Ledusha, uma poetisa, salvo engano, de São Paulo.
E esta maravilha de Antônio Risério,
poeta da Bahia:
Risos estalam sisos
Rios mudam a plumagem
Quando renasce das cinzas
O kamikaze da linguagem*
Era fome demais, sob o manto da Ditatura era preciso literalmente devorar
os espaços de expressão, como no poema de Jenesis Genúncio, poeta do Rio de
Janeiro:
em um ato me envolvo
em dois atos me apavoro
em quatro eu toco fogo
em oito ti devoro*
E esta
transgressão erótico-poética de Cristina Ohana, outro poeta marginal carioca:
Basta de cristandade
de santidade
de moralidade
obscuridade
Desejo a obscenidade
a oleosidade
a realidade
Desde essa idade
curto Marquês de Sade
me arde antes que seja tarde*
Tropicalismo, Clube da Esquina, cinema underground. Nuvem Cigana nos palcos e, nos letreiros luminosos,
cintilando o slogan de toda uma geração: Vai Fundo!
Não foi difícil chegar no pique ao final daquela década besta, a censura,
a caretice e os militares no poder estavam com os dias contados. O máximo da
vanguarda passou a ser escrever jornaizinhos de mimeógrafo, conclamando os
milicos a voltarem a seus quartéis o quanto antes. A abertura “lenta e gradual”
foi escancarada pela irreverência juvenil, preparando a libertinagem que estava
por vir.
(* Todos os poemas foram retirados do livro Poesia Jovem Anos 70, Editora Abril, 1982)
©
Abrão Brito
Lacerda
17 05 16
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