- Que idade você tem, Pedro?
-
Não sei, só olhando no Registro.
-
Onde está seu Registro?
-
Perdi quando estava na fazenda do Seu Olavo.
-
Isso faz tempo, não?
-
Seis meses.
-
Que seis meses que nada: faz seis meses que você se mudou para cá!
Pedro
Dandá deve estar caducando, mas não é o que parece. Foi aberto um inquérito
para descobrir sua verdadeira idade, que oscila entre os 80 e os 84 anos. Desde
que foi perdido o Registro e o registro do Registro, há toda sorte de especulação.
A última data certa a seu respeito é que se aposentou aos 65 anos, como todos
os brasileiros natos e naturalizados que carregam essa lerdeza tropical nas
costas. E lá se vão vinte anos ou quase que Seu Pedro, melhor seria chamá-lo
assim, vive da modesta bolsa do governo. Ele é a prova de que aperto não faz
mal a ninguém; morre muito mais gente frustrada por não ficar rica do que gente
humilde que aceita sua parca existência e desafia as leis da economia para
sobreviver a cada dia.
Há
uma lei, a grande Lei, aliás, a mais importante de todas as que regem a
existência, que diz que a condição da vida é levantar-se com o sol, cuidar dos
afazeres do dia e repousar-se para recomeçar no dia seguinte. Quando não
consegue fazer mais isso, pimba!, o sol mergulha na grande noite, você não mais
verá a linha do horizonte, nem sentirá o vento e o orvalho. O breu da morte, o
mistério, encarregar-se-á de encobrir tudo e sua história passará a ser contada
pelos que estão vivos.
De
nada vale congelar o corpo na tentativa de ressuscitá-lo dentro de duzentos ou
mil anos. Que espírito vai querer habitar uma carcaça rota ao invés de um feto
novinho em folha, com bilhões de células multiplicando-se à velocidade da luz?
Só a CTI poderá prolongar por algum tempo seu suspiro falho, para alegria dos
médicos e tristeza dos herdeiros que terão que pagar a conta.
Ver o Pedrinho Dandá pisar
no estribo e saltar sobre a sela da montaria com a galhardia de um rapaz de
vinte anos, é coisa que enche os olhos. Ele dá conta de toda a lida da roça;
tange e aparta o gado, tira leite, acorda às cinco da manhã, e dispensa
transporte para ir à cidade, localizada a quinze quilômetros da fazenda. Sobre
o cavalo, é a mais perfeita definição do Centauro que alimentava a imaginação
dos gregos pagãos.
Fazenda Coqueiros, no vale do Rio Água Fria, o universo de Pedro Dandá |
A única coisa que lhe
cansa é a rotina:
- Por que não quis ficar
mais com o Dr. Valentim, Pedro? Ele te trata tão bem.
- Tava com saudade da água
do Rio Água Fria. O clima daqui não tem igual.
- O Dr. Valentim está
fazendo de tudo para você voltar.
- Vou voltar. Mas antes
vou passar uns tempos com Seu Tião; a Dona Leopoldina diz que não quer morrer
sem me ver. E vou ficando por aqui até quando vocês deixarem.
- Pode fica quanto tempo
quiser, Pedro. Como das outras vezes, você sabe.
Se de aperto não morre o
pobre, a mesada oficial quase custou a vida a Seu Pedro. De tanto ouvir falar
que deveria descansar da labuta no campo, Pedro Dandá empregou os rendimentos
da aposentadoria para assentar casa na cidade. Foi a perdição do homem. Na falta
do que fazer, passou a perambular pelos bares da feira e a encher o cara, o que
lhe valeu a primeira consulta médica da vida. Ficou com o fígado comprometido e
só não entrou na lista na lista negra da senhora da caveira e da foice porque o
anjo da guarda o aconselhou a trocar a casa por um par de montarias de
primeira, arreios reluzentes e botas de couro de zebu. Pedro Dandá voltou a
viver nas fazendas, sem exigir salário fixo, a única condição era o pouso
seguro para ele e sua montaria. E foi assim passou dos oitenta anos, sem dar ares
de esmorecimento.
- Quantos anos você tem,
Pedro?
A idade só faz o homem para
quem tem apego aos números. Quando chegar sua hora, Pedro Dandá não tremerá
como uma vara verde. Está destinado a tombar de cima da montaria - lhe servirá
de digno pedestal -, sobre a terra que o acolheu, após emitir da garganta o
último aboio.
©
Abrão Brito
Lacerda
16 02 15
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