Por
alguma razão, toca-me escrever sobre meus amigos, tanto vivos quanto mortos. Na
medida em que o tempo passa, o segundo grupo aumenta, e é com tranquilo pesar
que vejo em cada um que se vai o lembrete de que minha hora também há de
chegar. Enquanto espero, vivo (tranquilamente) todas as horas, escrevo
(inevitavelmente), que seja como forma de aumentar minha poupança para a viagem
final.
Cada
pessoa tem um toque especial que merece ser lembrado, Roberto Soares, um amigo
dos anos 90 em Belo Horizonte, tinha uma notável veia satírica e uma atitude
udigrude (underground) muito simbólica daquela época. Venho agora a saber do
seu passamento e lanço ao vento estas poucas impressões.
Numa
tarde de fim de ano, lá pelo ano de 1995, enquanto caminhava pelo campus da
UFMG, deparei com um show muito louco, em frente ao prédio das Ciências
Humanas. Esses shows eram promovidos pelo DCE, os artistas eram amadores, como
aqueles que então ocupavam o calçadão em frente ao hall de entrada. Um misto de
New York Dolls e Secos e Molhados. A música era ruim, mas as performances muito
chamativas e produziam um efeito caleidoscópico que só os ácidos gástricos conseguem
explicar. Algum tempo depois, conheci Roberto Soares e o grupo Incrível Rúcula
que agitou a cena udigrude de BH nos 90.
Devo
a eles meu contato com o vegetal, meu ilustre desconhecido até então, a ponto de
eu ver apenas um sentido no nome da banda, mais especificamente a referência ao
herói das histórias em quadrinhos. Tornei-me um fã incondicional de rúcula com
massas, uma paixão que perdurou mesmo depois que o super-herói murchou e saiu
de cena.
Fiquei
sabendo que Roberto era meu vizinho e que tinha acabado de abrir um bar no
quintal da casa da irmã, um empreendimento que tinha tudo para dar errado e não
falhou. Depois que cerrava as portas, o dono bebia, fumava e cheirava com alguns
fregueses. E além disso faziam muito barulho.
Uma
zorra que incomodava a vizinhança, mas não a polícia, que nunca passou pra dar
batida. É um mistério, não é mesmo? Talvez a explicação esteja no fato de
Roberto conhecer os policiais e estes a ele, já que eram naturais do mesmo
bairro. Um dos policiais, por sinal, era dono do stand de hambúrguer da esquina
e era manjado por fazer vista grossa com relação aos bagulhos que a polícia
devia combater. Política da boa vizinha e respeito para com a freguesia. Ponto
para a lei e a ordem.
Um
dia convidei o Roberto para ir lá em casa, pois tinha trazido um carote de
pinga da Bahia. Ele, lógico, topou. Em dado momento, demos de cozinhar. Por
incrível que pareça, eu tinha uma casa com cozinha equipada, mas não sabia
fazer um ovo frito. Roberto também não, mas resolveu bancar o sabichão.
Tínhamos arroz e um pacote de almôndegas e pusemos mãos à obra. As almôndegas
foram moleza, bastou seguir as instruções, mas o arroz foi um desastre. Para
começar, excesso de óleo na panela, depois o arroz molhado jogado em cima,
produzindo o efeito de uma bomba de pedrinhas. Atabalhoado, Roberto jogou a
panela no chão e queimou o pé. E ainda disse que a culpa foi minha.
Como
todas as minhas recordações daquele tempo, retenho apenas fragmentos do
Incrível Rúcula. A capa do CD que lançaram era hilária, com os integrantes
usando trajes fakes de papel, com colete, gravata e colarinho alto,
provavelmente inspirados nos Flintstones. Não me lembro nada das letras/poemas
que o Roberto recitava, mas isso era o de menos. O que de fato contava era a
atitude debochada, na linha do que nos acostumamos a chamar de arte marginal, a
qual atingia seu epítome com a sátira e a paródia.
A
arte imita a vida, que imita a morte, sua companheira inseparável. Não importa
o tempo e lugar, há que viver intensamente, como no poema de Torquato Neto,
poeta da geração mimeógrafo:
“eu
sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.”
©
Abrão Brito Lacerda
07 11 20
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