Na
vila de Escorial, às margens do Rio São Francisco, a vida corria tranquila
naqueles idos de 1960. Os únicos eventos extraordinários eram o encalhe de uma
barca na rota para Piranhas e as datas do calendário católico, celebradas com
pompa e fervor. Dia de São Miguel, Dia de São Pedro (o padroeiro da cidade), Festa
de Bom Jesus dos Navegantes. Sobre as águas mansas do grande rio circulavam
barcos, cholas (canoas de médio porte, capacidade até 300 sacos), canoas de
pescadores e, sobretudo, canoas de toldo ao velho estilo, algumas capazes de
transportar até 600 sacos ou 36 toneladas. A cultura ribeirinha aflorava nos cânticos dos
condutores das balsas e nos bailes de coco, com sua mescla de música e dança. Todos
se alegravam, inclusive os meninos. De modo gracioso ou perverso, como só os moleques
de antigamente sabiam fazer.
Xioli
(imitação de Acioli), narrava a história do lugar a partir de dois pontos de
observação privilegiados: a barbearia e a delegacia de polícia, pois ele era ao
mesmo tempo barbeiro e delegado. Tanto fazia quanto deixava de fazer: se era
para cuidar do transporte de um enfermo ou caçar um ladrão, agia com presteza;
mas, se era um “causo” particular, como rusga de família ou tema de religião,
preferia não se meter. Ultimamente chegavam a seus ouvidos queixas sobre a
intromissão de missões evangélicas na paróquia, introduzindo práticas e modos
diferentes e ameaçando as tradições locais. Como sempre, Xioli preferiu fazer
vista grossa, mesmo porque os pastores pagavam o transporte nas canoas, como
todo mundo, e ficavam em pensões, que tampouco eram de graça.
Talvez
tenha subestimado o poder dos pregadores, pois, em pouco tempo, o rebanho
divergente cresceu. Cenas de batismo de imersão às margens do grande rio começaram
a se tornar comuns nos domingos de manhã. No meio das carrancas que adornavam
as proas dos barcos (com suas caretas e dentes ameaçadores), mergulhavam e emergiam
os novos convertidos, como garças desengonçadas, com suas túnicas brancas
açoitadas pela corrente.
Na
véspera da festa do padroeiro, não era bom sinal e o fermento da rebelião
popular crescia no zunzum da feira e dos salões de coco. Falava-se da
necessidade de expulsar os invasores e aplicar-lhes uma sova corretiva e duradoura.
O único emperro era o delegado. Xioli alegou estar muito ocupado com a
preparação do grande evento anual, que teria quermesse, leilão e a tradicional
corrida de canoas pelo rio, além das apresentações dos ternos de cocos, de casa
em casa.
A
noite do grande dia foi especialmente agitada, com ataques severos dos moleques
sabotares.
O
passatempo predileto da prole miúda daquele lugar com pouco o que fazer era
misturar-se aos foliões e salpicar sorrateiramente o chão de terra batida com
pimentas malaguetas, as quais, após serem pisoteadas, convertiam-se em
verdadeiras bombas químicas, capazes de provocar espirro, tosse e
lacrimejamento. E o que era pior: após
ser atacado, um salão de dança precisava ser evacuado e cuidadosamente varrido
e descontaminado, o que não era tarefa fácil naquela urbe onde muitas casas eram
iluminadas por candeeiros.
Os
adultos não sabiam, mas os moleques competiam entre si para ver quem seria o
maior sabotador do ano. Preparavam-se com antecedência, como para uma guerra, e
traçavam um plano organizado de ataque. Identificavam os quintais com as melhores
cepas de pimentas-bombas, sorteavam os alvos de ataque (no par ou ímpar) e
partiam munidos de sorrisos sardônicos e bolsos cheios de artefatos de guerra.
No dia seguinte, reuniam-se na beira do rio para o banho coletivo e a avaliação
dos resultados e faziam uma algazarra de se escutar da praça da igreja.
Xioli
foi acionado várias vezes para dar cobro da molecagem, mas, sempre que chegava
a uma casa que tinha sido atacada, os responsáveis já tinham desaparecido. E, se ele abordasse
por engano o filho de alguma mãe ou algum pai que estivesse por perto, criava-se
uma rusga que podia ser resolvida na faca se nenhum conhecido ou deixa-disso
entrasse para apartar. O povo do sertão era terrível, tinha pouca tolerância
para com o erro e tomava simples mazelas como crimes de honra. Os moleques eram
herdeiros dessa índole perversa. E o senhor delegado, que nessas horas desejava
ser um simples barbeiro, sofria as consequências de ter que por ordem em um
lugar que não tinha destacamento policial e punia qualquer gesto de fraqueza
com o epíteto terrível de “frouxo”.
(Traipu, Alagoas)
Enquanto
os moleques mofavam à tripa forra dos adultos nas barrancas do rio, em meio a
gritos insolentes, saltos mortais e disputas de canga, pais, mães e autoridades
se reuniam na barbearia/delegacia para discutir providências. Muitos tinham
cara de convalescentes de um ataque químico, outros pareciam ter dormido pouco
à noite, o que aumentava o desejo de vingança. Mas as providências exigidas logo
se concentraram nos missionários da nova fé, que tinham tido a cachimônia de
marcar um batismo coletivo nas águas sagradas do Rio São Francisco logo depois
da festa do padroeiro! Foi decidido que
um destacamento policial viria de Guararu para ficar sob o comandado do “senhor
delegado”, o qual aceitou a incumbência e prometeu honrá-la sem falta. O objetivo seria espreitar os evangélicos
durante o ato e dar-lhes a devida correção.
O
reforço policial chegou de manhã - mas não desceu em terra, ficou ao largo, na
outra margem do rio, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Ao contrário
dos missionários, que chegaram acenando de cima da canoa, desceram com seus
ternos brancos e suas bíblias e puseram imediatamente mãos à obra. Havia até
mesmo noviços da zona rural, o que atestava o fervor e a resolução dos
pregadores. Deram início aos trabalhos de consagração, com a característica
imersão dos novos crentes, trajados de túnicas imaculadas que brilhavam ao sol
do meio-dia. O pastor colocava uma mão na cabeça e a outra no ombro do
batizando, proferia as palavras do evangelho e então o mergulhava, demonstrando
grande perícia.
Então,
a barcaça que estava ancorada do outro lado do rio começou a se aproximar, abordando
a presa com um bando de piratas, dissimuladamente no início e depois furiosamente.
Sem que os crentes entendessem o que estava se passando, os policiais saltaram
dentro da água rasa, armados de cassetetes e rabos de galo (antigos punhais,
longos e finos, usados pela polícia antes da introdução das armas de fogo) e deram
a carga. Os pastores, por dever de ofício, tentaram resistir com a força da
palavra e levaram a pior. O delegado ordenou que fossem submetidos ao vexame
público antes de serem levados para a delegacia de Guararu.
O
vexame significava que cada detento deveria realizar a penitência de
transportar água do rio até o templo católico, usando para isso uma lata de
querosene de 20 litros, despejá-la na porta da igreja e ajoelhar, prestando subserviência
à única fé tolerada naquela localidade. Os prisioneiros amotinaram em nome dos
dez mandamentos de Lutero, mas, ao verem a revolta da multidão, mal contida por
Xioli e seus homens, temeram pelo pior e se resignaram a cumprir o calvário.
Sob
o sol impiedoso da tarde, enchiam suas latas d’água, arremetiam contra o
barranco e cambaleavam rua acima em direção à praça. Se deixassem cair uma gota,
levavam tacadas (dolorosíssimas, disseram) de rabos de galo. Para aumentar o
suplício, quando estavam perto de ganhar a praça os policiais que os escoltavam
puxavam a corda amarrada ao pé de cada um e os deitavam ao chão. Ganhavam sova
extra (para deixarem de ser moles) e tinham que voltar ao rio para recomeçar o
trabalho. Quando os policiais se distraíam, aparecia algum moleque para dar o
puxão fatal.
Os
prisioneiros foram despachados para Guararu no final do dia, quando começaram a
dar sinais de exaustão. Tiveram direito a um banho e a uma refeição, para que
não chegassem ao destino acabados. Sem que reclamassem, suas bíblias foram
devolvidas, pois se tratava de uma tradução diferente e seria um ato apócrifo
usá-las no ritual católico. Foi um consolo nada desprezível. Tomaram o livro
sagrado entre as mãos e puseram-se a lê-lo com fervor, buscando explicação para
tamanha provação nos trabalhos de Jó e no juramento de Abraão. Até o destino
incerto da delegacia de Guararu, seria uma longa viagem pelas águas turvas do São
Francisco.
©
Abrão Brito Lacerda
21 10 18
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