Por João Batista Martins, doutor
em Língua Portuguesa e
Linguística
pela PUC-MG.
“A
persistência conduz ao sucesso”, isto está no livro das mutações. E persistência, resiliência e mutação são com
este autor. Bom humor também. Os narradores e os personagens de O Amor e Outras
Tolices, segundo livro de Abrão Brito Lacerda, confirmam esse ethos que traduz
a vida não como ela é, mas como poderia ser, com todos seus riscos, com a
nobreza que Freud confere ao humor: essa fantástica capacidade humana de
economizar sentimentos de dor. Como no
primeiro livro, o autor continua se divertindo ao escrever e com isso
realimentando a alegria de recriar a vida, vivida, sonhada, inventada, lembrada,
narrada.
Mas,
literatura não é só entretenimento, há também um discurso, uma fala e uma
reflexão posta na temática constante dos contos – nuns mais diretamente,
noutros obliquamente -, um papo sobre o amor, os amores e algumas tolices
divertidas. E amor em todas as variações: ora doce e juvenil como na descoberta
do amor por “Maira”, ora erótico como em “Sete para Viver” e “Ruivas que me
Carreguem”, ora livre como o amor dos jovens em “Azul” e “Aranzel de
Desconcertos”. Também tem entre seus matizes o bouquet da acidez como o amor do
poeta ou o amor fatal do mágico. Ora tem seus tons de amargo como na “História
dos Bons Velhos Tempos”. Ora é amor trágico e depois conciliador em “O Amor e
Outras Tolices”. Assim, quanto aos temas, sobram histórias de amor, de humor e
de amigos levadas pela pegada desse estado de espírito tão próprio aos humanos.
Depois do
ethos e dos temas, chama a atenção o estilo cada vez mais rápido, límpido e
claro. O efeito de uma frase prepara a seguinte. Enxuto ao limite que o autor
não é de jogar conversa fora, especialmente, depois de ampliar seu convívio com
outras artes. E mais, além da pintura, da literatura, das línguas e da música,
já faz tempo que convive com a espiritualidade oriental. Gente econômica,
contida nos gestos e nas palavras, bem educada. Essas vivências, creio eu,
torna seus personagens, como sempre, engraçados, altivos, polidos e
inteligentes. Daí interessantes; mesmo levando uma vida lascada. Riquíssimos,
embora ralados.
E os
segredos da composição? Seus modos de dizer chamam a atenção para os dois modos
enunciativos da textualização: a descrição concisa e o domínio do diálogo,
fazendo deste, quase sempre, um lugar de argumentação. Ele pratica diversos tipos de diálogo, mas meus preferidos são os
argumentativos. E você vai encontrá-los facilmente. São indicadores, sintomas
da doença moderna das comunicações aceleradas, nas quais uma fala não remete a
outra antecedente, mas já prepara uma sequência futura. Não se fazem como
diálogos naturais, do tipo pergunta-resposta-avança. É assim na vida atual, mas
não foi sempre assim e nem é sempre assim nos textos do Abrão. Há também os
diálogos inacreditáveis, como os de “Petra”, mas são raríssimos. Bem como há
exemplares de diálogos irredutíveis, não tão raros porque são do estilo do
autor quando pratica o que chamei no primeiro livro de sotaque de reinvenção,
uma apreciação em sotaque formal inesperado, reelaborado.
Garantido é
que você vai apreciar todos eles porque nesses usos do diálogo é onde se
percebe a rédea curta com que são levadas as personagens, algumas usadas para
proteção de face do alter ego do autor para caracterizar ora um elemento do
caráter humano, ora um temperamento, ora uma ética. Por esse modo enunciativo,
ele faz com que elas digam o que não diria, pelas ideias, pelas palavras que
escolhe, pelo fraseado do ritmo, pela oportunidade preciosa de narrar. É
oportunidade de demonstrar pela arte e pela estética uma ética da leitura como
os personagens pensam desta maneira e não de outra, como eles sentem e
experimentam a experiência do mundo, como são tocados pelas emoções ou como são
indiferentes. A nenhum deles o escritor permite se estender em longas falas,
nem mesmo aos narradores, pois o autor em sua disciplina traz todos nas rédeas
curtas do texto curto. E ai acontece o efeito: o texto não cansa e aí se revela
um pouco de si do autor para a narrativa que respeite o leitor e não o
exaspere.
O Abrão é
historiador por formação superior e professor das línguas portuguesa, francesa,
inglesa e espanhola desde o século passado, mas que valoriza a arte de narrar,
pelos modos do contar, seja pelos artifícios do lembrar, seja pelas artimanhas
de entrelaçar real e imaginário, seja pela prática da imaginação aberta. Por
tudo isso, ele manobra bem a técnica de estabelecer o foco de terceira pessoa.
Coisa que muito gramático e linguista chama de não pessoa. Desse foco de
narrador, ele manobra, conduz pelo desenrolar do enredo e da trama - o lance
mais forte do texto do Abrão e que revela sua imaginação exuberante, variada a
rodar pelo mundo, por lugares, personagens, cenas, lugares, etc., porque esse
narrador que recentemente começou a ser construído, bem ao gosto de seu autor,
é um sujeito viajado e de muitas experiências e que sabe o quanto a humanidade
valoriza uma narrativa.
Quem lê os
textos do Abrão - na concisão das crônicas de seu blog ou no seu primeiro livro
“Vento Sul” - pode se perder em alguns experimentos nos quais agora procura
contar com mais cumplicidade de leitor, porque nem todos os mistérios se
resolvem e nem todos os textos são “pão pão/queijo queijo” com começo meio e
fim, nessa ordem. Agora os textos se
espicham pela descrição de belas personagens como La Rúbia do conto “Azul”,
descrições de lugares, imaginários como em “Petra”, ou reais, como em BH, nas
quais ele faz concessões à história oficial da cidade. Expande-se também pela
maestria em manobrar o discurso literário conduzindo a lógica da invenção.
Na crônica,
dirão todos, ele exercita, desenvolto como um bom samurai, seu lócus predileto,
de contar movido pelo vivido e pela observação direta dos objetos do mundo (as
crenças, os valores, as condutas, o sui generis do fait divers dos lugares do
mundo por onde anda). No texto curto, de natureza leve e densa e ao mesmo
tempo, gentilíssimo nas escolhas lexicais, respeitoso e econômico com o leitor
no uso do léxico estrangeiro. Sem o pedantismo dos esnobes, usa o espanhol, o
inglês, o português e o francês com parcimônia e habilidades de pintor.
Em Vento Sul, seu livro anterior, seu
enunciador - e a meu ver só havia um - ouvia, via e presenciava tudo, por traz
do balcão da vendinha, um narrador trazido à cena pelas artes e movimentos do
lembrar e do narrar os eventos simbólicos dos tempos memoráveis para o narrador
de uma infância resgatada e trazida à cena em uma cidade de levar na bolsa. Um
olhar narrador que trazia um fio discursivo a todas as cenas em movimentos
envolventes, quase sempre descritivos, trazidos à cena pelo olhar e pela
imaginação de uma criança e por cenários bucólicos, embalados por aventuras,
mitos, assassinatos e mortes, molecagens sádicas ou saudáveis, de valentões e
todo tipo de personagem digno da fauna dessas localidades interioranas tão
aprazíveis e indicadas para o desenvolvimento saudável de pessoas boas. Agora, os narradores se multiplicam,
estão vestidos de urbanidade, são cidadãos do mundo. Da Belo Horizonte dos anos
1980, de alguns lugares que nos trazem saudades e indagações – Cine Pathé, o
edifício maleta, as moradias estudantis Borges da Costa e Mofuce, e muito
especialmente, para quem estudou/esteve na Fafich, e passou pelo bar do gordo
ou pelo bar do Lulu. Agora, seus narradores são urbanos, seus personagens andam
pela cidade, movidos por buscas as mais diversas dentro do espectro da trilogia
fantástica dos anos 1980: sexo, drogas e roquenrol. Fácil não foi, mas foi
divertido parece-me mais adequado. Há quem diga que quem viveu os anos 1980,
não viveu para contar. Nosso autor está aí para provar o contrário, com um casting
variado de personagens, personas saídas das vivências e do imaginário neste seu
segundo livro de textos curtos. Sentimentos de uma época, mas, ele é também
inventor das suas próprias criações, como todos aqueles que gostam de narrar,
de construir histórias.
Mas,
atenção, não é coisa para amadores, esse tal de amor. Todas as personagens
estão envolvidas com a busca por algum prazer, tudo gente polida, embora em
vidas muito lascadas. Alguns, só os amigos devem saber se são alter egos
nítidos das escolhas deste professor de línguas, tradutor, historiador,
escritor, pintor, blogueiro, violãozeiro, pai, marido e mestre budista, homem
multitalento, num exercício apaixonado, como bem queria o velho Hegel, antes de
degenerar, nada que se cria sem paixão vale a pena. Como um dos meus heróis
modernos, Steve Jobs propunha: é preciso empenho e paixão no que se faz. Fato é
que o brasileiro, talvez nem tão cordial como queria Sérgio Buarque de Holanda,
mas certamente educado, envolvido com as artes e bem-humorado, existe nas
histórias do Abrão.
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O livro está disponível em formato papel e e-book em diversos sites.
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