(Imagem da Web) |
Tomba
Homem era um touro girolando de uma tonelada, temido pelos vaqueiros e peões,
que jamais ousariam montá-lo. Até mesmo para os pequenos manejos da granja, ele
era evitado, pois tinha temperamento tempestuoso e imprevisível. Melhor
deixá-lo com suas vacas, junto às quais ele se fazia tocar de um lado para
outro, sem contratempos.
J e M, dois tipos durões, das plagas rurais
afamadas pelo machismo, apreço à força bruta e aos gestos rudes, não sabiam
disso, o que lhes valeu uma lição de vida e morte e alguns membros quebrados.
Praticavam
por profissão essa atividade estúpida que consiste em fazer correr um animal
por uma pista de areia e depois jogá-lo ao chão com um puxão violento do rabo.
Espetáculo ululante para a plateia encharcada de cachaça e cerveja barata,
ritual de preparação para o momento em que vão comer o boi, literalmente, no grande
churrasco de celebração do mau gosto e da banalidade.
Nem
sequer tinham culhões para montar nos touros mais brutos e arriscar a vida,
voar de ponta cabeça e aterrissar no meio da arena de metal – esses são atletas
- e comemorar a derrota honrosa para o bicho bravo, no lombo do qual ficara dez
segundos antes de ser cuspido para os ares como um homem bala.
Derrubar
a rês entre duas linhas demarcadas na pista de areia é o mote dessa atividade
de homens de pouco tutano e muita testosterona. O novilho ou novilha é escorraçado para fora do
tronco de madeira e posto a correr na pista longitudinal. Dois cavaleiros o acossam, sendo um que o
fustiga e o mantém em linha reta e outro que o arrasta pelo rabo e o derruba
entre as demarcações fatais – o peão tem que observar o momento em que a rês
está com as duas patas traseiras no ar para surpreendê-la e fazê-la ir ao chão.
Trôpego e assustado, o animal ganha direito a vazão, através de uma cancela
situada no fundo da rinha. Chamam a isso
de vaquejada.
É
proibido beber durante o trabalho, sob risco de cair junto com o animal - ou ao
invés dele. Mas nem todos cumprem as orientações, é de se imaginar, em meio à
plateia de sirigaitas e bebuns, o melhor terço é ficar tão tonto quanto eles e
assoprar no ouvido do novilho um bafo de álcool a 48%. J e M eram, entre outras
coisas, adeptos do JB, o fogo no rabo engarrafado nas altas terras da Escócia.
Essa foi a razão da desavença, um trâmite que teve de ser resolvido pelas vias
de fato, afinal dois peões não se beijam e, no oeste, quem pisca primeiro
morre.
A
rusga foi reportada pelo oficial da porteira, que é como chamam o cara que
cuida da soltura do animal na pista. M era a escolta, J era o derrubador da vez,
puxador de rabo, rebotalho. Revezavam no ofício como dupla que estava longe do
estrelato e dos prêmios e precisava de pontos para continuar no campeonato.
-
Você não chegou junto como devia – observou M, o mais esquentado dos dois –,
foi por isso que derrubei a presa fora da linha.
J
engoliu em seco, mas não conseguiu se conter quando M prosseguiu:
-
Vê se não murcha dessa vez, mão de moça.
-
Não é culpa minha se você pega no rabo do bicho como se tivesse nojo.
-
O boi cagou na saída, e o rabo escorregou de minha mão...
-
Passou creme na mão antes de vir pra vaquejada?
Em
tais elogios estavam entretidos quando o oficial da porteira deu o grito: “Boi
na pista!”
J
e M partiram em atraso, mas conseguiram alcançar o animal ainda na metade do
percurso. M fez seu trabalho como devia e J agarrou o rabo do bicho com firmeza
– mão de moça, creme na mão... puxou com tanta força que o novilho voou sobre a
linha e aterrissou do lado de fora.
Perderam os pontos, levaram vaias.
Dois
erros consecutivos os desclassificavam do torneio, era humilhante - trocaram sopapos
antes de sair da pista, ainda em cima dos cavalos. Foram expulsos e ainda multados
em quinhentos reais cada um. Pior: não poderiam mais participar do churrasco,
com a turba os tratando de franzinos, frouxos e mãos de seda. Deveriam ir
pescar ao invés de dar uma de peões de vaquejada. Olho no olho, olhares
sanguíneos, trocaram mais “elogios” no fundo da rinha, captados pelos ouvidos
atentos do oficial.
-
Maldita hora em que fui sorteado junto com você. Nunca tive um companheiro tão
ruim!
-
E você deveria voltar pra fazenda, ordenhar vacas.
-
Filho de uma puta, tome!
Com
a interferência do oficial da porteira, foram mandados pra resolver suas
diferenças em outro lugar, “sem as irmãs por perto para protegê-los”.
E
dirigiram-se para a manga adjacente ao parque de vaquejada, cada um por um lado
diferente para não se engalfinharem no caminho. Pensamentos nebulosos
conturbavam suas mentes, mandar o desgraçado do outro para debaixo de sete
palmos de terra, passaram por detrás das arquibancadas, apinhadas de gente
insultante e insular, atrasaram o passo, como dois covardes, mas o amor próprio
os impeliu a cumprir com a palavra.
Na
manga, coberta por capim verdejante, pastavam vaquinhas tranquilas, guardadas
por um touro com cara de poucos amigos. A cada bocada no colonião, o reprodutor
erguia a cabeçorra e olhava em redor, pronto para rechaçar um possível invasor.
Sem dar conta desse detalhe animal, J e M lançaram-se um sobre o outro assim
que se reencontraram.
Soco,
rasteira, voadeira, bofetão. Mordidas na mandíbula, chute no saco, dedo no
olho, dedo no nariz. Se um caía, rolava como uma bomba falha, recobrava
equilíbrio, partia para cima. Quem escapasse, sairia aleijado.
As
vacas assustaram-se, e correram para longe daquele desbordamento humano. Mas o
touro, tomando a frente do rebanho, assoprou como uma locomotiva e partiu a
galope na direção dos meliantes.
J
e M estavam tão cegos pelo ódio mútuo que se deram conta do touro quando este
estava a alguns metros. Desatracaram-se e correram na direção da cerca. Mas foram
atropelados e lançados do outro lado com chifradas brutais. Livres do touro, e
embora zonzos com a sova, retomaram a briga nefasta. Atracaram-se novamente e
rolaram no chão de areia em uma nuvem de murros.
Ao
grito de alarme do oficial da porteira, um grupo de homens correu para
separá-los. Foi nesse momento que um personagem de peso entrou novamente em
cena, roubando o espetáculo para fazer a alegria dos pagantes pagãos e dos cronistas.
Tomba
Homem tinha ficado do outro lado da cerca, cavando o chão e bufando, enquanto
os desafetos rolavam pelo chão, a turba gritava e o pelotão de socorristas
corria na direção dos brigões. Tomba Homem lembrou-se que era um touro, o mais
forte e temido de todos, e arrancou estacas e arame com uma investida tão
colossal que fez as vacas mugirem. Depois, arremeteu com peso, bafo e fúria,
disposto a terminar o trabalho.
Não
deu pra ninguém, entre brigões e separadores de briga, além de cavaleiros de
manejo, o touro os atacou indistintamente. Como sacos de carvão ou espantalhos
de palha, foram jogados no ar e desabaram sobre a areia fora, em quedas desengonçadas
e cômicas. Cada um se safava como podia, alguns fingiam-se de mortos,
cobrindo-se de areia, outros fugiam em desespero. Até mesmo as arquibancadas
começaram a se esvaziar.
Quando
os homens a cavalo conseguiram finalmente controlar o bicho, fazendo entrar no
cercado um grupo de vacas para distrai-lo, o quebra-quebra já tinha sido feito.
Tomba Homem aceitou voltar à manga, apesar de ameaçar vez ou outra dar meia
volta e pegar mais alguns. Seu pasto
verde, seu cocho de sal, sua represa de água fresca e seu bem sortido harém. O
que aquela gente estúpida tinha ido procurar ali?
©
Abrão Brito Lacerda
23 09 19
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