Foto: flickr |
Meu vizinho, o seu Mendes, não tinha
visto para entrar nos States, então resolveu encarar a fronteira mexicana. Não
foi por falta de aviso: a família implorou, os amigos preveniram sobre a fúria
dos coiotes, capazes de devorar incautos em pleno deserto. Mas têm pessoas que
não emendam, e seu Mendes era uma dessas. Não mandou mais notícias,
provavelmente seu corpo está agora virando fóssil em uma cova rasa do planalto
de Laredo.
Vem ao caso que eu acabo de
completar sessenta anos, e virei, involuntariamente, conselheiro de pessoas de
juízo mole, o que me leva a dedicar meu rico botim linguístico ao bem da
humanidade sofredora. Valham-me, santespírito, efeitos alucinógenos do auasca,
musas sem pudor! Antes que a verve desmedida seque, deitarei sobre o indefeso
papel estas impressões sujas de digitais biométricas. O único problema de
morrer é deixar a Maria aos cuidados pouco confiáveis de gente retrógrada.
Papai tá gagá de novo, disse a filha
do seu Mendes. Eu lhe respondi, minha filha, quando a pessoa põe essas coisas
na cabeça, melhor deixar pra lá - é como o chapéu, cada um sabe a bitola que
lhe cabe. Não pense que por ser homem, branco, frequentar o Rotary e o Lions
está isento do fanatismo dos querubins da nova era. Papai poderá morrer,
insistiu a garota. Sábias palavras, menina, todos nós haveremos de juntar as
botas algum dia, só resta torcer para que não seja numa linda manhã de sol. Hora
de morrer é à noite, no domingo de preferência - você, por exemplo, quantos
anos tem?
A história do meu vizinho foi uma
tremenda mancada.
No tempo em que Jesus Cristo usava
fraldas, pensar progressista era sinônimo de exílio: “Brasil, ame-o ou deixe-o”,
este slogan velho como os dinossauros acaba de ser retomado pelos novos idiotas
de plantão, uma prole nefasta e careta, cujo maior objetivo é fracassar com
pompa e circunstância. Saia da reta, eu avisei a pobre garota preocupada, com
justeza, com a saúde mental do pai. Finja que não vê, que não é consigo, faça
como os pinguins rosa do lago de Mumbai, que enterram os pescoços na lama
poluída para catar algas.
Foto: Los Angeles Times |
Agora, se você acha que passar o dia
inteiro atrás de um balcão em São José do Prado é mais promissor do que esfregar
o chão em New Jersey é problema seu. Não venha depois queixar-se para mim, não
consigo fazer milagres, no máximo conto uma mentira ou duas. A morte deveria tomar
vergonha também, e parar de incomodar os trabalhadores que dão a pele por um Brasil
melhor. Por que não vai ceifar os nababos do STF? - com aquelas estolas, nem
precisaria de mortalhas, bastariam os caixões.
Escuta, seu pai morreu fazendo o que
mais gostava: bancar o ingênuo. Com certeza algum cacto espinhoso há de lhe
servir de sombra. E ela, de novo, como pode ser tão sarcástico, ele foi vítima
de uma trama sórdida dos agentes da imigração. Seu pai bebia? Muito. Fumava?
Parou depois que teve aneurisma. No deserto de Laredo, até as iguanas tomam
mescal, um spirit três vezes mais forte do que a tequila, uma bomba H
alcoólica. Seu pai morreu feliz.
Não é fácil ter uma frase
construtiva na ponta da língua e poder distribui-la como a hóstia sagrada.
E ainda ter que aceitar a crítica de
gente insensível.
Em Roma como em Luanda, ri melhor
quem já bebeu.
Deixe descansar o seu pai, disse eu
à filha do defunto, seu Mendes. Morrer para dar vida a uma crônica é uma nobre
missão, mais louvável do que ir para a guerra ou inventar a roda.
©
Abrão Brito Lacerda
30 05 19
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