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ÔNIBUS! BUU!


 
(Imagem: pt.coolclips.com)
            No Interior, não é fácil encontrar matéria para uma crônica, o que me leva a escrever sobre cães e galos e a inventar causos. Mas, na capital, não faltam motivos, bons ou ruins, dependendo do ponto de vista ou do humor do dia. É no meio das multidões de desvalidos que moem seus sonhos nesta imensa fábrica de injustiças que se sente o verdadeiro peso da vida. Vejamos os prosaicos ônibus, sobre os quais já escrevi mais de uma vez, essas caixas de metal, desconfortáveis de doer, que constituem a base do nosso transporte coletivo e dos quais nossas cidades grandes dependem como um ser vivo depende do oxigênio.  
            Convém lembrar que os coletivos são caminhões adaptados a partir do design dos carros de bois do velho oeste, com um cubo de aço, duas fileiras de assentos estreitos e duros de PVC de cada lado e tubos de metal que dividem os diferentes compartimentos. Não diferem em nada dos troncos usados nas fazendas para sujeitar os animais, assim como não difere muito o tratamento oferecido a gado e humanos nas duas situações. Se tem aquela canção popular que diz: “Ê, ê, ê, vida de gado/povo marcado, ê/povo feliz”, então o ônibus contribui para essa felicidade de forma brutal: arranca, para, anda aos solavancos, bufa, dá trompaços nas curvas, indiferente aos idosos, às crianças e às mulheres de salto alto que se equilibram como peritos através das ruas íngremes de Belo Horizonte. Do seu motor a diesel, estrategicamente colocado dentro do receptáculo habitável(?), sai um ronco nervoso e ameaçador. Ele treme, chacoalha, patina e o ruído seco da caixa de câmbio durante as trocas de marchas pode ser ouvido à distância.
            E o odor característico! Não me refiro aos odores exalados por esse acúmulo de gente suada ao fim de uma jornada, nem tampouco ao inflatu ou crepitu que alguém desprevenido venha a soltar, mas ao cheiro de óleo diesel que o motor dissipa para dentro do receptáculo. Qualquer semelhança com uma câmera de gás será mera coincidência, a forma de tortura praticada nos ônibus vai muito além da sova física. A cidade grande está infestada pela praga sem controle dos pedintes, vendedores e pregadores de ônibus, bandos, facções deles, provavelmente sindicalizados, que pisoteiam o direito ir e vir dos cidadãos e barganham com a miséria para usufruir vantagens. Ou a prefeitura faz vista grossa ou então ela é obrigada a permitir o acesso dessa gente aos coletivos. Não seria absurdo supor que as empresas estão vendendo esse espaço de marketing e inaugurando um novo nicho de mercado. E, de parte dos usuários, pode-se facilmente ler nos rostos a indiferença e a resignação.
            Os ônibus são por isso o templo das heresias e dos milagres, tudo aqui dentro é urgente, tem que acontecer antes de acabar a viagem. Cientes da provação suplementar que representam, esses mercadores ambulantes falam em nome de Deus. Como esse sujeito aí, de mãos finas, rosto sem rugas, gordo e provavelmente guloso, que se dá ao direito de plantar como o executor de uma ordem de fuzilamento no meio do ônibus e desfiar sua verborragia cínica, que Deus abençoe a todos, tenho uma mensagem para os senhores que estão iniciando uma longa jornada para o trabalho, a vida está difícil, não é mesmo, mas, com a bênção de Deus, todos vão vencer, eu quase perdi a vida na Pedreira Padre Lopes (famosa comunidade da periferia de BH, conhecida pelo tráfico de drogas e pelos assassinatos frequentes), mas hoje estou aqui, graças a essa cartela que eu vou passar agora para os senhores,  vejam que linda mensagem, em nome de Deus, em nome de Jesus, o que vale é a bênção, não é mesmo, são cinco reais cada cartela, duas por oito e três por dez, qualquer  contribuição espontânea de três ou dois reais será bem vinda, pois tudo é grande aos olhos do Senhor, não é mesmo, uma contribuição para a minha passagem, um real, cinquenta centavos, aquela moedinha que está no fundo do seu  bolso, o que vale é o tamanho da graça, não é mesmo.  
            Ainda que o sujeito seja recebido com a solene indiferença ou estoica paciência que os habitantes da cidade grande desenvolveram ao longo dos anos, ele não se rende até que o ônibus se aproxima do centro. Então, ele recolhe as cartelas distribuídas e recebe em troca algumas moedas oferecidas por um dos passageiros, provavelmente algum morador da Pedreira Padre Lopes.
            Que cara chato, não é mesmo? Desabafo ao ouvido da senhora sentada a meu lado, pois julgo que ela me deve alguma simpatia por ter ocupado, além do seu assento, metade do meu. Poderia ser pior, ela diz. É verdade, ele poderia estar armado.
©
Abrão Brito Lacerda
23 07 18
                       

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