No
Interior, não é fácil encontrar matéria para uma crônica, o que me leva a
escrever sobre cães e galos e a inventar causos. Mas, na capital, não faltam
motivos, bons ou ruins, dependendo do ponto de vista ou do humor do dia. É no
meio das multidões de desvalidos que moem seus sonhos nesta imensa fábrica de
injustiças que se sente o verdadeiro peso da vida. Vejamos os prosaicos ônibus,
sobre os quais já escrevi mais de uma vez, essas caixas de metal,
desconfortáveis de doer, que constituem a base do nosso transporte coletivo e
dos quais nossas cidades grandes dependem como um ser vivo depende do oxigênio.
Convém
lembrar que os coletivos são caminhões adaptados a partir do design dos carros
de bois do velho oeste, com um cubo de aço, duas fileiras de assentos estreitos
e duros de PVC de cada lado e tubos de metal que dividem os diferentes
compartimentos. Não diferem em nada dos troncos usados nas fazendas para
sujeitar os animais, assim como não difere muito o tratamento oferecido a gado
e humanos nas duas situações. Se tem aquela canção popular que diz: “Ê, ê, ê,
vida de gado/povo marcado, ê/povo feliz”, então o ônibus contribui para essa
felicidade de forma brutal: arranca, para, anda aos solavancos, bufa, dá
trompaços nas curvas, indiferente aos idosos, às crianças e às mulheres de
salto alto que se equilibram como peritos através das ruas íngremes de Belo
Horizonte. Do seu motor a diesel, estrategicamente colocado dentro do
receptáculo habitável(?), sai um ronco nervoso e ameaçador. Ele treme,
chacoalha, patina e o ruído seco da caixa de câmbio durante as trocas de
marchas pode ser ouvido à distância.
E
o odor característico! Não me refiro aos odores exalados por esse acúmulo de
gente suada ao fim de uma jornada, nem tampouco ao inflatu ou crepitu que
alguém desprevenido venha a soltar, mas ao cheiro de óleo diesel que o motor dissipa
para dentro do receptáculo. Qualquer semelhança com uma câmera de gás será mera
coincidência, a forma de tortura praticada nos ônibus vai muito além da sova
física. A cidade grande está infestada pela praga sem controle dos pedintes,
vendedores e pregadores de ônibus, bandos, facções deles, provavelmente
sindicalizados, que pisoteiam o direito ir e vir dos cidadãos e barganham com a
miséria para usufruir vantagens. Ou a prefeitura faz vista grossa ou então ela
é obrigada a permitir o acesso dessa gente aos coletivos. Não seria absurdo supor
que as empresas estão vendendo esse espaço de marketing e inaugurando um novo
nicho de mercado. E, de parte dos usuários, pode-se facilmente ler nos rostos a
indiferença e a resignação.
Os
ônibus são por isso o templo das heresias e dos milagres, tudo aqui dentro é urgente,
tem que acontecer antes de acabar a viagem. Cientes da provação suplementar que
representam, esses mercadores ambulantes falam em nome de Deus. Como esse
sujeito aí, de mãos finas, rosto sem rugas, gordo e provavelmente guloso, que
se dá ao direito de plantar como o executor de uma ordem de fuzilamento no meio
do ônibus e desfiar sua verborragia cínica, que Deus abençoe a todos, tenho uma
mensagem para os senhores que estão iniciando uma longa jornada para o trabalho,
a vida está difícil, não é mesmo, mas, com a bênção de Deus, todos vão vencer,
eu quase perdi a vida na Pedreira Padre Lopes (famosa comunidade da periferia
de BH, conhecida pelo tráfico de drogas e pelos assassinatos frequentes), mas
hoje estou aqui, graças a essa cartela que eu vou passar agora para os senhores,
vejam que linda mensagem, em nome de
Deus, em nome de Jesus, o que vale é a bênção, não é mesmo, são cinco reais
cada cartela, duas por oito e três por dez, qualquer contribuição espontânea de três ou dois reais
será bem vinda, pois tudo é grande aos olhos do Senhor, não é mesmo, uma
contribuição para a minha passagem, um real, cinquenta centavos, aquela
moedinha que está no fundo do seu bolso,
o que vale é o tamanho da graça, não é mesmo.
Ainda
que o sujeito seja recebido com a solene indiferença ou estoica paciência que
os habitantes da cidade grande desenvolveram ao longo dos anos, ele não se
rende até que o ônibus se aproxima do centro. Então, ele recolhe as cartelas
distribuídas e recebe em troca algumas moedas oferecidas por um dos
passageiros, provavelmente algum morador da Pedreira Padre Lopes.
Que
cara chato, não é mesmo? Desabafo ao ouvido da senhora sentada a meu lado, pois
julgo que ela me deve alguma simpatia por ter ocupado, além do seu assento,
metade do meu. Poderia ser pior, ela diz. É verdade, ele poderia estar armado.
©
Abrão Brito Lacerda
23 07 18
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