Se viver está difícil, imaginem
morrer. Nossa história começa com um homem sentado a cavalo sobre uma janela do
décimo-quinto andar do edifício Acaiaca. Sem camisa, e com o peito reluzente ao
sol da tarde, ele grita frases obtusas, imprecações, clamores, promete se
lançar no vazio, ou, pelo menos, é isso
que chega aos ouvidos dos passantes lá embaixo. Uma pequena multidão acaba se formando nas
calçadas de uma das esquinas mais movimentadas do centro de Belo Horizonte. Há
quem finja conhecê-lo: “Desça daí, Alfredo, sua mãe vai morrer do coração!” Há
quem apele para seus sentimentos cristãos: “Arrependa-se, e confie no perdão
divino!” Alfredo, ou seja qual for o seu nome, responde apoiando-se no
peitoril da janela com ambas as mãos, como quem está prestes a saltar. Isso
provoca uma reviravolta dos curiosos, muitos se afastam com medo de serem
esmagados, ouvem-se gritos histéricos, chega a polícia militar, o trânsito é
interrompido por uma faixa de isolamento, buzinaços, xingaços, sirene do corpo
de bombeiros, equipe de paramédicos, uma
ambulância e enfim a Associação dos Suicidas Anônimos.
Como
convém, são os militares que assumem o controle da situação. Uma equipe toma o
elevador em direção ao andar onde se encontra o suicida, outra começa a distribuir
ordens entre apitaços e a formar um cordão de isolamento. Indiferente ao
remue-meninges, Alfredo, vamos dar-lhe o direito a um nome, põe-se de pé sobre
a janela e, com as costas apoiadas na parede, caminha sobre a platibanda até o tubo
hidráulico. Adeus mundo cruel, ele está livre para consumar seu ato.
Nesse
exato momento, um grupo de adolescentes ruidosos desce a Rua Espirito Santo e, ao
perceber o que se passa, começa a gritar: “Pula! Pula!” Os jovens têm dessas coisas. A
polícia avança para restabelecer a desordem, os rapazes correm na direção do
viaduto Santa Teresa, enquanto continuam a gritar: “Pula! Pula!” Como se tivesse
sido siderado por um raio, o suicida detém-se subitamente, muda de ideia, faz o
caminho de volta à janela e, enquanto a multidão está distraída, salta para
dentro do prédio.
E
assim, em meio à confusão, ninguém o reconhece quando ele reaparece no hall,
trajando o casaco do ascensorista. Nenhuma resistência é-lhe oferecida quando
ele fura o bloqueio da portaria, ganha a rua e começa a andar em direção à
Praça Sete, a trezentos metros de distância. E não poderia ser diferente,
porque a excitação é evidente nas centenas de rostos que olham para o alto,
aguardando com impaciência o desfecho dos acontecimentos. Alfredo se vai,
cabisbaixo – ele está acostumado a olhar para o chão -, ops!, alguém deixou
cair uma nota de vinte reais, ele a recolhe, pensa “um dia é da morte, outro é
do suicida”, dessa vez vai poder tomar um café reforçado na praça para quebrar
o jejum.
E
é lá que o reencontramos, apoiado ao balcão como um operário de fábrica, sorvendo
o preto que sacia em grandes goles, devorando sem parcimônia uma porção de pão
de queijo e croquete. Sua loucura era muito mais de fome do que de qualquer
outra coisa, pois, assim que a comida chega ao estômago, todo seu corpo se
lança aos trabalhos da sobrevivência, o coração se anima, o oxigênio infla os
pulmões, o cérebro responde, a boca emite enfim o desabafo:
-
Aonde vamos parar com a falta de respeito das pessoas?
O
cliente adjacente lança-lhe um rabo de olho e dá um passo para o
lado, mas Alfredo continua:
-
Não se pode mais morrer em paz!
-
Do que você está falando?
- Imagine o senhor: eu ia pular de cima do Acaiaca, nada mais poderia me deter. Daí chegaram
uns gaiatos e começaram a me desafiar. Eu não podia suportar
aquilo!
-
Então você é o responsável por essa bagunça toda?
-
Não fala alto, porque não quero ser reconhecido pelos repórteres da televisão.
O
cliente confere as imagens no celular e olha de volta para o ex-suicida: não
reconhece a casaca bege, mas a calça azul é idêntica.
-
Devia dar graças a Deus por poder tomar mais um café.
-
Se estou vivo, é contra a minha vontade.
-
Isso não faz o menor sentido. Porque não tenta outro método?
-
Eu levei uma semana preparando um plano...
-
Enforcamento?
-
Coisa de fracassados.
-
Se lançar debaixo de uma carreta no Anel Rodoviário?
-
E como vou chegar até lá?
-
Overdose de crack?
-
Meu vício é a cachaça.
-
Afogamento nas águas podres do Ribeirão Arrudas?
- O senhor não entende: eu queria me espatifar no asfalto, atrapalhar o trânsito,
aparecer na televisão.
-
Hum... então aproveita que os repórteres estão esperando.
-
Não é a mesma coisa. Além disso, só por desaforo, agora decidi viver.
-
Faz muito bem, a morte não é solução para nada. Olha, eu também tenho meus
problemas, mas mesmo assim resolvi encarar um novo emprego. Sofro de hérnia...
-
Você também tem hérnia de disco?
-
E hemorroidas. Já fui até operado.
-
Alguma dívida?
-
Devo aluguel e crediário. Foi por isso que minha mulher fugiu com as crianças.
-
Tem um barraco onde morrer?
-
Moro em um quartinho de favor.
-
Seu nome tá sujo no SPC e no Serasa?
-
Só consigo comprar na venda do bairro.
-
Já foi preso alguma vez?
-
Duas vezes. A última quando trabalhava como camelô na Rua Espírito Santo. A
prefeitura mandou expulsar todo mundo, me deram uma sova, me levaram em cana e
me enquadraram por interceptação de mercadorias – sabe como é?
-
Nunca pensei que alguém pudesse ter os mesmos problemas que eu.
- E, pra piorar, ontem recebi um SMS da
operadora, avisando que minha linha de celular está suspensa até o pagamento das
contas atrasadas.
-
Isso é insuportável!
-
Mas ainda assim, é melhor do que morrer. Escuta, tenho que ir agora. Se
precisar de alguma coisa, aqui está o meu cartão.
-
“Funerária Campo Lindo”?
-
É. Fica no Santa Efigênia, ao lado da Santa Casa. Por falar nisso, o Cemitério
da Paz abriu vaga para coveiro. Não quer tentar?
-
Não sei, não tenho nenhuma experiência.
-
É o tipo de coisa que você aprende fazendo. E, depois, é muito mais fácil do
que se matar.
-
Você acha?
©
Abrão Brito Lacerda
07 07 18
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