Na canção “Fora de
Ordem”, Caetano Veloso diz que, no Brasil, "tudo parece que era ainda
construção e já é ruína". Considero
esta definição perfeita e a incorporei a minha própria visão de
nosso país. Agora, vejo que outros compartilham da mesma ideia, a saber, que o
Brasil é uma máquina trituradora de coisas e conceitos, que parece estar em
constante movimento, embora não saia do lugar.
Há um afã em recuperar o atraso, então faz-se tábua rasa
de tudo, a natureza (exuberante só em alguns lugares), os monumentos, os
costumes, a culinária, a língua, tudo sofre uma crescente invasão alienígena e
se desfaz. Uma palavra do inglês deve ter mais valor do que seu equivalente em
português, pois já não nos damos mais ao trabalho de traduzir. Adoramos colocar
nossa identidade em cheque, é um debate nacional sem fim, imitamos
descaradamente o que outros criam, somos os reis da gentileza e da paródia.
Temos complexos aos montes, somos macunaimas, antropófagos e capitalista
selvagens, tudo ao mesmo tempo. Até a escala malévola do cada vez pior
ganhou foros permanentes por aqui e a expressão “fundo do poço’ virou uma ruína
semântica.
O lixo, assim como o luxo, nos pertence; o luxo que é lixo
só, a luxúria do lixo e o lixo futuro andando de mão em mão, no aguardo
do gesto viciado: o presente cuidadosamente embrulhado é o papelão que
alimentará o monturo. Como se não bastasse, queimamos etapas, por exemplo, o
canteiro de obras que constrói o prédio ultramoderno lança seus rejeitos no terreno
baldio ao lado, unindo destarte, sem nenhum lapso temporal, o futuro e o
passado.
Essas observações encontram ressonância no livro Dictionnaire Amoureux
du Brésil (“Dicionário Amoroso do Brasil”), do jornalista
francês Gilles Lapouge*. Trata-se de uma obra que aborda a sociedade e a
história brasileiras sob a forma de verbetes, como um verdadeiro dicionário. A análise
do autor sobre a sociedade brasileira é interessante e honesta, e não há dúvida
que ela fala com perfeito conhecimento de causa. Ademais, o autor demonstra
por nosso país um amor sincero e uma curiosidade sem fim. Viajando a trabalho
ou a lazer, já esteve em todas as paragens, norte e sul, leste e oeste, cidade
e sertão. O que não o impede, antes o
autoriza, a lançar em filigrana sua ironia de observador externo sobre nossas
mazelas e absurdos. Através de seu texto eloquente e poético, fica ainda mais
evidente o contraste que cultivamos em relação ao mundo “civilizado”. Se o
Brasil é bonito enquanto exótico (ou uma gigantesca ruína, como ele diz), nossa
bagunça e nosso improviso são demais para o seu pensamento cartesiano. E aqui
cabe um “mas”: décadas de convívio com a gente tupiniquim, mais anos de
pesquisa para a confecção do livro, não o ajudaram muito a compreender nossa
malícia perversa.
O “dictionnaire” tem vários verbetes excelentes; para o momento, atenho-me
àquele denominado “Ruínes”, no qual ele declara: “O Brasil é uma vasta
ruína. Esta é a razão de ele ser tão bonito, tão emocionante. Ele tem em seus
estoques as ruínas mais variadas, e pode te oferecer várias outras amostras,
conforme seu gosto, como se você estivesse escolhendo um produto no catálogo de
uma loja: ruína nobre ou trivial, terrível ou comovente, antiga ou fresca,
ruínas magníficas e suntuosas.” (p. 573)
O autor leva tão a sério nosso gosto pela decadência que
chega a afirmar que existe um propósito invisível nessa mania nacional,
sobretudo naquilo em que nós nos esmeramos, a saber, o que ele denomina de
“fabricação de ruínas ordinárias”: a utilização de materiais de baixa qualidade
e rapidamente degradáveis que provoca a deterioração precoce de nossas torres
de vidro, concreto e aço. Enquanto em Lascaux ou mesmo em Atenas, observa,
foram necessários milhares de anos para transformar em ruínas construções
feitas com materiais muito mais frágeis, por aqui a decadência se faz sentir
numa questão de décadas.
Ele se abisma com o fato de que alguns bairros centrais da cidade de São Paulo,
onde foi morar em 1957, tenham passado da condição de prestigiosos a
abandonados no curto período de 50 anos. Com humor negro, constata que os
imóveis envelheceram na mesma escala que ele, e se alegra em perceber que
sobreviveu a muitas outras coisas por aqui!
Em contrapartida, faz questão de frisar e refrisar, no Velho Continente, não
apenas monumentos isolados, mas cidades inteiras são renovadas de modo a
perdurarem através dos séculos como símbolos da história, identidade e cultura
de seus povos, razão pela qual apresentam hoje um aspecto mais novo do que
quando foram construídas! Lá o antigo é novo, aqui o novo já é ruína.
E logo chegamos á conclusão que tudo não passou de somenos
e voltaremos ao costumeiro barulho das máquinas – de construção e demolição.
(* Gilles Lapouge, Dictionnarie
Amoureux du Brésil, Plon, 2011)
©
Abrão
Brito Lacerda
24
05 17
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