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UM RIO: ESTE

Banhando-me na foz do Rio Jequitinhonha, em Belmonte, Bahia.

             Tendo nascido no município de Itarantim, no Estado da Bahia, e de lá saído quando começava a andar, não guardo nenhuma lembrança da minha terra natal.  Apenas uma certa nostalgia, que jamais desmistificarei: melhor manter o sítio numa aura mágica, como uma espécie de origem perdida que me impulsiona a estar buscando sempre.
            Nasci em Córrego dos Trabalhos, mais precisamente, um lugar que não consta do mapa. Meu pai andou um dia inteiro a cavalo até chegar ao tabelião mais próximo, que ficava em Salto da Divisa, cidade situada no lado de Minas Gerais, nas margens do Rio Jequitinhonha, para me registrar. Deduzo que o dito córrego do meu local de nascimento desemboca em algum rio, que por sua vez deságua no Jequitinhonha como afluente, ligando minha vida de algum modo a esse mítico rio.
Nascente do Jequitinhonha, em Serro, Minas Gerais.

            Quando eu tinha um ano e meio, meus pais resolveram se mudar para outra localidade, um pouco mais ao sul do estado da Bahia. Sobre essa viagem, feita em um caminhão, carregando várias famílias, ouvi dos mais velhos histórias dignas de uma epopéia. Foi quase um mês para percorrer pouco mais de trezentos quilômetros! As estradas eram caminhos talhados no meio da mata atlântica, que então cobria todo o sul da Bahia. Pontes não havia, então foi preciso atravessar o temível Rio Jequitinhonha de balsa. Teve gente que se recusou a tamanha façanha e muita reza foi necessária para que todos chegassem sãos e salvos do outro lado e pudessem continuar viagem até o destino.
Uma linda cachoeira no Jequitinhonha, em Milho Verde, Serro, MG.

            Quando cresci e comecei a viajar, cruzei por várias vezes o Rio Jequitinhonha, a começar pela ponte da BR 101, no município de Itapebi, sul da Bahia, e sempre senti a mesma emoção ao encontrar esse ente natural, espécie de amigo que flui para o mar desde o remoto passado. Era como se eu precisasse conhecê-lo melhor para descobrir um pouco mais sobre mim mesmo.
            O mesmo aconteceu quanto estive em Milho Verde, região da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, onde nasce o grande rio. Não poderia haver cenário mais bonito para um curso d’água iniciar sua aventura pela superfície do planeta em direção ao soberano mar! Em meio a uma topografia rochosa e uma vegetação de transição, com aspectos de serrado nos platôs e mata atlântica nos vales, belas cachoeiras se formam no leito de pedra, convidando a uma pausa, uma reflexão ou um refrigério nas águas transparentes. É lá que eu sempre vou para esquecer as agruras do nosso mundo de aparências.
Tropeiros atravessando uma ponte sobre o Jequitinhonha em Diamantina, MG.

            Paradoxalmente, quando o rio desce mais em seu curso e ganha volume com a contribuição de vários afluentes, tem que atravessar uma região semi-árida, caracterizada pela pobreza e o infortúnio da gente ribeirinha. O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais pobres de Minas Gerais e do Brasil, e não o é certamente por uma birra da natureza, mas sim pelos erros dos homens, e por isso paga um alto preço, a começar pela peja que carrega. Outro paradoxo: ali se produzem algumas das manifestações culturais mais ricas do estado, como o artesanato e a música.
            Ao se espraiar em terra plana, logo depois de Salto da Divisa, o rio perde a sua mística e passa a gozar da quase indiferença que o caracteriza no estado da Bahia, onde só é notícia quando alguma enchente do seu regime ciclotímico abate os desafortunados de Itapebi e arredores. A partir daí seu leito se afunila novamente, até virar o denso caudal barrento que ele despeja no Oceano Atlântico, na altura da cidade Belmonte.
Ponte sobre o Jequitinhonha na BR 101, em Itapebi, BA.

            Conhecendo a nascente do rio, tendo curtido algumas das cachoeiras que adornam sua parte alta, não poderia deixar de visitar a sua foz. Para tal, fui até Belmonte e banhei-me no encontro de suas águas com as do mar. Vê-lo assim tão decidido e poderoso, empurrando o oceano com calma fúria, mostrou-me que a grandeza se faz com a soma de pequenos gestos e é construída ao longo de uma marcha sinuosa. Voltei a ser menino novamente, pés no chão e imaginação desgarrada. Se morro algum dia, o que duvido muito, pedirei para que lancem minhas cinzas em qualquer ponto do grande rio. É no seu leito que quero ser embalado para a eternidade.

O encontro do grande rio com o Oceano Atlântico, em Belmonte. BA.

©
Abrão Brito Lacerda
04 03 18



            

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