(imagem: focusfoto.com.br) |
Naquela
época, a televisão ainda engatinhava e o rádio era o grande meio de comunicação
de massa. Jornais não havia no lugar e, se houvesse, faltariam leitores.
Cinema, só mesmo o que os meninos inventavam, uma película de plástico,
recortada e colada em tirinhas, sobre a qual se desenhavam, a caneta
esferográfica, aventuras dos heróis das fitas de cowboy. Entrada: 10 palitinhos
de fósforo. Ainda assim havia filas.
Quando a Copa do Mundo
começou, as transmissões soavam distantes, pareciam vozes de outras galáxias
ecoando através do espaço sideral. Nas ruas de terra batida, brincávamos,
tentando imitar os lances contados e recontados pelos cronistas. Suprema
democracia da infância: lado a lado jogavam Müller, Pelé e Bob Moore! As bolas
de plástico já existiam, não precisávamos mais de bolas de meia. O único
problema é que o plástico rompia-se facilmente em atrito com o chão áspero,
quando a bola batia no arame farpado que cercava o campinho – para protegê-lo
dos animais que gostavam de passar ali a noite e não objetavam em fazer suas
necessidades in loco – ou mesmo quando a redonda levava uma bicuda de alguém
com unhas de faquir.
Mas camisas não havia,
muito menos chuteiras, para alegria do Seu Gerônimo farmacêutico, que se
encarregada de acabar de arrancar as unhas que saltavam quando alguém chutava o
chão e aplicar mertiolate com pó de penicilina nas feridas expostas que volta e
meia apareciam nos joelhos, cotovelos e outras partes desnudas do corpo. Éramos
crianças e éramos heróis, nada podia nos deter. No domingo, a “Rua de Baixo”
jogaria contra a “Rua de Cima”, ou seja, os meninos da parte baixa da vila
contra os terríveis inimigos da parte alta. Os da Rua de Cima tinham as tais
unhas de faquir, poderiam rasgar nossas pernas como uma navalha. Decidimos que
deveríamos usar bandas de tecido enroladas nas pernas para protegê-las. Dois ou
três meninos roubariam os meiões dos pais.
Na véspera, sábado de
feira, fomos conferir a repercussão do grande clássico da molecada. O Jorge
estava alarmado:
- A Rua de Cima vai jogar
de camisas! Ganharam também uma couraça e tornozeleiras!
As tornozeleiras eram
feitas de algodão trançado com fios de elástico. Eram fortes e resistentes e
permitiam aos pequenos chutarem a bola de couro sem machucar os pés.
- O time deles já tem
nome: vai ser Santos Futebol Clube!
Corremos até a venda do
Seu Dias, na esperança de que ele pudesse nos salvar de tamanha humilhação. Se
aparecêssemos de barrigas peladas, perderíamos o jogo antes de este começar.
- Vocês querem jogar de
camisas? Mas só se fôssemos ao Itanhém! Não tem camisas de futebol por aqui.
- Tem sim, tem na feira.
O João da Serraria comprou camisas do Santos para eles.
- E onde vocês vão
arrumar dinheiro?
Isso era mais difícil do
que fazer gol ladeira acima. Nossos pais não apoiariam nossa demanda, pois
chegávamos tarde em casa e faltávamos com o dever de casa por causa do futebol.
O Mimi, dono do cinema de película de plástico, recusou patrocínio.
- Vou ver o que posso
fazer – disse Seu Dias ao perceber a aflição que se apossava de nós.
Voltamos à feira. As
roupas, de uma malha chinfrim e cores berrantes, eram colocadas ao rés-do-chão,
sobre uma lona. Cada camisa amarela que se ia era para nós um sofrimento. Corremos
à loja do seu Dias, à espera de um milagre; porque, afinal, milagres acontecem
– não foi para isso que Jesus Cristo veio ao mundo?
- Vocês tiveram sorte –
disse Seu Dias. - O Zeca Berilo chegou da lavra hoje com um saco de pedras
azuis. Contei pra ele a história do João da Serraria e ele ficou revoltado.
Aqui está a pedra que ele doou para vocês comprarem o uniforme.
Nova carreira até a
feira:
- Queremos onze camisas
amarelas, do goleiro e mais dez.
- E quem vai pagar?
Seu Dias chamou o mascate
de lado, apresentou a suposta pepita de turmalina, ainda envolta em escória e restos de
terra vermelha.
O homem abriu um sorriso
de uma orelha a outra e pudemos ver os cifrões desenharem-se em seus olhos:
- São quatorze camisas –
declarou seu Dias –, três para os reservas. - Mais quatorze pares de meiões e
de tornozeleiras – tem tornozeleiras?
- Vou buscar ali na loja
do meu primo – apressou-se o comerciante.
Um último imprevisto: as
camisas remanescentes não eram do mesmo tamanho e tampouco havia as numerações
correspondentes de 1 a 11. Tivemos que levar três camisas 8, duas 11 e algumas
3 e 4. O pior é que não havia mais camisa 10, a mais procurada. A solução seria
converter a 1 do goleiro em 10, acrescentando-se um zero através da mão destra
de alguma costureira.
Voltamos à venda uma
última vez para agradecer nosso mecenas. Estamos exultantes de felicidade e
fazíamos planos para o futuro do nosso time, orgulhosamente batizado de Brasil
Futebol Clube.
A venda estava que era
uma algazarra só. O Zeca Berilo fazia discursos inflamados contra o insolente do
João da Serraria e era aplaudido pelos comensais. Aos nos ver, deu um soco na
mesa e gritou:
- Vão lá, meninos! Mete o
ferro neles!
©
Abrão Brito
Lacerda
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