Desci
na Estação Châtelet, na Rive Droite, margem direita do Sena, com destino ao
mercado de pássaros que tradicionalmente se abre aos domingos no centro de
Paris. Eu havia decidido por uma abordagem mais prudente desde que, na véspera,
levara uma carreira de umas putas dos lados do Boulevard Saint-Martin. Tudo
porque eu, turista afoito, bati uma foto um tanto à la legère, sem
pensar. Eu Explico:
Na Rive Droite, bem pertinho do centro, tem uns bairros populares muito
interessantes. Por ali se cruza com estudantes, operários, turistas e
imigrantes de variada plumagem. À medida que eu subia a Rua Montorgueil, a
paisagem mudava subitamente: ora uma profusão de restaurantes, ora um mercado
popular, ora umas mulheres exóticas - clic, clic, clic. Inocentemente virei uma
esquina e entrei numa rua onde se praticava a venda do corpo, ofício antigo.
Havia mais tipos femininos à escolha do que verduras em uma feira: africanas
que brilhavam como ébano, loiras eslavas de traços finos e alongados, cossacas,
tailandesas, filipinas, possivelmente algumas brasileiras, coisa que não tive
tempo de conferir. Pareciam vestidas para uma festa de carnaval ou halloween,
de forma voluptuosa e colorida. Algumas posavam, estáticas, sobre motos
estacionadas no passeio, outras davam psius! em diferentes línguas, outras se
limitavam a esfregar os dedos polegar e indicador no gesto característico para
significar money, dólar, euro, dindim. De repente, percebi que elas vinham em
minha direção, ávidas por dinheiro, suponho. Com medo de ser depenado, fiz o
que já havia aprendido na cidade: corri para uma estação do metrô. Consegui
escapar são e salvo e, o que é mais importante, sem pagar pela foto.
Por abordagem prudente eu entendia entrar no mercado de pássaros, como fizera
Jesus Cristo ao expulsar os vendilhões do templo, abrir as portas das gaiolas e
deixar os pintassilgos, canários, chamarizes e afins voarem em liberdade pelos
céus daquela cidade velha e cinza. Seria a vingança definitiva da minha
infância, da infância que insiste em subsistir dentro de mim, que se ri toda
vez que digo que estou ficando velho e que me faz amar tudo que seja inocente
como um passarinho.
Porque os pássaros nasceram para o ar, assim como os peixes para a água.
Aprisioná-los é um ato tirânico, ainda que a gaiola seja de ouro. Um pássaro
engaiolado é um coração que não bate, um ser que não sente, uma lábio
insensível ao beijo. Em menino, eu corria pelos campos apenas para vê-los
brincar entre as nuvens, dar piruetas e pousar nas copas mais altas das
árvores. Nunca quis tê-los ao alcance das mãos, minha imaginação viajava com
eles. De noite, em abria as gaiolas dos meus irmãos mais velhos, tendo o cuidado
de quebrar uma ou duas taliscas para ter a resposta pronta no outro dia de
manhã: “Os passarinhos escaparam de novo!”, lamentavam os ganchudos. “Não, foi
o gato, vejam!”, eu respondia sem pestanejar.
Alguém me dirá que os pássaros presos alegram as crianças, os velhos e os
preguiçosos. Há ainda aqueles que argumentam que o animal cativo
vive muito mais do que na natureza, onde é vítima de predadores. Os
escravocratas que defendiam o antigo regime diziam igualmente que os negros
eram muito bem tratados por seus senhores e seriam umas bestas fora das
senzalas.
E você, estimado leitor, dar-me-ia razão em querer aprontar uma revolução
avícola em pleno centro da cidade luz? Felizmente, a Pont-Neuf, a ponte que
tive que atravessar para chegar do outro lado do Sena era suficientemente longa
e eu parei para olhar os barcos apinhados de turistas que passavam embaixo. As
águas do rio corriam mansas. As pequenas ondas cintilavam ao brilho do sol
matinal. Saquei da máquina fotográfica e comecei a tirar fotos - livre,
como um passarinho.
©
Abrão Brito Lacerda
Sempre fiquei tentando imaginar o que pode sentir alguém diante de uma gaiola. Nunca consegui.
ResponderExcluirTenho uma dificuldade enorme em ter empatia por aqueles que se alegram com o sofrimento.
Ótimo texto, Abrão. Quanta sensibilidade!
Gracias, Zé. Acho que devemos ter empatia para os seres como um todo, respeitar o lugar de cada um na cadeia da existência. Tenho horror aos preguiçosos e aproveitadores, geralmente são humanos.
ResponderExcluirMeus cumprimentos por seu posicionamento de compaixão cristã pelos animaizinhos bípedes canoros e de bela plumagem. Alguns humanos, prendendo os bichinhos, é que mostram o animal que são. E ainda pretendem o raciocinio perverso pensar que o prisioneiro canta/fala para ele. vê se pode!!! Nem é capaz de ter consciência da própria animalidade.
ResponderExcluirPor isso me respondam, se bicho falasse ia parar pra dar ideia para ser humano puuuurquê?
Anônimo Anônimo disse...
ResponderExcluirMeus cumprimentos por seu posicionamento de compaixão cristã pelos animaizinhos bípedes canoros e de bela plumagem. Alguns humanos, prendendo os bichinhos, é que mostram o animal que são. E ainda pretendem o raciocinio perverso pensar que o prisioneiro canta/fala para ele. vê se pode!!! Nem é capaz de ter consciência da própria animalidade.
Por isso me respondam, se bicho falasse ia parar pra dar ideia para ser humano puuuurquê?