O
amiguinho de pelo não tem mais do que vinte centímetros de altura quando está
em posição de descanso. No entanto, quando se move, com saltos graciosos e
ágeis, é bem mais alto. É mais alto ainda quando fica de pé sobre as patas
traseiras e fareja os arredores. Mas sua posição favorita é rente ao chão,
estendido como uma diva sobre o divã, orelhas apenas de pé, pois coelho que
tudo ouve não morre cedo.
É
discreto, ardiloso e furtivo. E silencioso também. Seus únicos ruídos são o
ronronar gutural intermitente característico do estado de excitação ou a batida
das patas traseiras quando precisa defender seu território contra algum
invasor.
Os
gatos morrem de inveja de sua doce concentração. E de sua higiene também, pois ele
não precisa de banho, xampu ou perfume. Basta-lhe um jornal para fazer as
necessidades, dispensadas em pelotinhas inodoras, que mais parecem caroços de
romã. Não solta pelos aleatoriamente, não ocupa espaço em camas e poltronas, não
foge arredio pelas calhas. Seu reino
é o chão, de cimento, mato ou areia.
Os
cães são mal educados e fedorentos. Passam o tempo a ladrar e a perturbar a
vizinhança. Precisam disso, pedem aquilo. Lições de civilidade para não atacar
as visitas. Vermífugos para dizimar os parasitas de seus estômagos insaciáveis.
Manicure, pedicure, pelicure. E algumas pedradas quando precisamos mandá-los
para o inferno, lá onde, aliás, habita o cão. Os cães são inimigos de todos os
animais que não sejam o próprio cão. Sua vontade é caçá-los e dilacerá-los.
Tornado tem toda razão em desconfiar deles.
Quanto
às mulheres, como invejam a maciez do seu casaco! Toque suave, sem estrias ou pelos
encravados. Caprichosamente limpo com lambidas regulares. Giselle Bündchen, com
seu andar retilíneo, sulcando a passarela com saltos que mais parecem
ferraduras, morreria de inveja dos movimentos elegantes e perfeitamente sincronizados
de Bola de Pelo.
Sabe
aguardar a volta do seu amo – cuja chegada reconhece pelo barulho do portão –,
confortavelmente instalado atrás da porta. Quando esta se abre, salta para o jardim,
sem ser percebido. Busca seu lugar favorito, debaixo do pé de Iris, onde vem
cavando uma toca há várias meses. Arranha freneticamente o chão com as patas
dianteiras, como se pretendesse concluir o trabalho com urgência, mas para logo:
está destreinado para lutar pela sobrevivência. Talvez os humanos cavem um
buraco para ele.
Quando
todos já estão se recolhendo, a pergunta:
-
Onde está Tornado?
Procuram
atrás dos guarda-roupas, nos corredores, na sala de TV e na biblioteca. Nada do
peludo.
-
Vai ver, está no jardim. Você trancou o portão?
-
Acho que me esqueci.
-
Então ele saiu para a rua! Foi atacado pelos cachorros!
Correm
em socorro do possível coelho perseguido pelos piores amigos do homem.
O
portão está aberto, mas ele não saiu. Volta os olhinhos cor de rosa para os
bípedes, como quem diz:
“-
Eh, por que tanta afobação?”
-
O que você está fazendo aí?
-
“Curtindo o frescor da noite, o contato com a terra molhada, o odor do Iris.”
-
Já pra dentro? Onde já se viu!
-
“Olha que mijo em suas pernas!”
Tornado
sente a presença dos cães inimigos e fica imóvel, esperando que eles não se
atrevam a atravessar o portão daquela propriedade particular.
-
Quanto tempo vivem os coelhos?
-
Na natureza, dois anos no máximo, se algum predador não comê-lo antes. Mas o
Tornado tem mais de três anos.
Dicionário
do coelho:
-
dar pulinhos: vamos apostar corrida?
-
circular entre as pernas: preciso de atenção
-
arranhar: é sério, você está se fazendo de surdo
-
morder o pé: você me fez perder a paciência
-
morder o calcanhar: não limpe meu cantinho
-
mijar nas pernas: meu desprezo, bípede impertinente
-
bater as patas traseiras no chão com força: vou partir pra briga
-
orelhas em pé: tô ouvindo tudo
-
orelhas deitadas: tô ouvindo nada
-
uma orelha deitada: esqueci uma orelha
-
coçando uma orelha: cuidado, sarna!
-
bigode agitado: cheirando perigo
-
focinho agitado: cheirando comida
-
olhos fechados: don’t disturb.
Ao
contrário dos humanos, que estão sempre envolvidos em alguma coisa, como
trabalhar, assistir à TV ou conversar, Tornado descansa o dia todo, tirando o
tempo de comer e fazer as necessidades.
No
início, tentaram mantê-lo à base de ração, mas ele recusou. Não prestaria tão
bons serviços de companhia comendo aquela gororoba seca, comprada em sacos
pardos, com a imagem de um coelho bobo no rótulo. Pior: desprezou a cenoura.
Andaram lendo muitas histórias de coelhos antes de comprá-lo e achavam que
sabiam tudo sobre os leporídeos. Deram-lhe cenouras inteiras: preferia roer os
pés dos armários. Começaram a ralar a cenoura: aceitou, mas no máximo uma vez
por semana, caso não haja folhas frescas.
Enfim,
entenderam sua dieta frugal, segredo de tão boa forma. Milho e couve como
pratos de resistência, agrião, coentro e folhas secas em pequenas porções, mais
pão como complemento. Com um único pecado: os biscoitinhos de chocolate, do
qual o menino tanto gosto e que acabaram caindo em seu agrado. Um ou dois ao
dia. Se não tiver, serve biscoito de maizena:
-
Quer biscoito? Seu guloso!
Tornado
apóia-se sobre as patas traseiras e estica o focinho para cima, até abocanhar o
delicioso petisco. Depois, posta-se ao lado da soleira, entre a sala e a
cozinha, de onde pode observar tudo o que fazem. Ali ficará em posição de
descanso, patas dianteiras dobradas à frente e patas traseiras esticadas para
trás.
O
local é perfeitamente estratégico para ele. Da cozinha emanam os odores que
mais lhe agradam, além de barulhos reveladores: crepitar de embalagens de
biscoitos sendo abertas, ruído de televisão, que ele não entende, mas adora
ver, conversas, música. Cochila em paz e harmonia embalado pelos papos de família
ou música de violão.
Ele
não sabe, mas estão de partida e vão deixá-lo por uns dias:
-
Tchau, Tornado! Até a volta!
-
Seja bonzinho, o Marcos vem cuidar de você.
Partem
de férias e deixam Tornado aos cuidados de outra pessoa. Ele fica um palito. Mal
toca nas folhas de couve, que lhe são servidas inteiras, ao invés de fatiadas,
como se deve. O milho, trocado uma vez ao dia, seca sob o calor inclemente e
ele tem que roer os grãos murchos. Até que voltam:
Tornado
ouve o ranger do portão, o ruído do motor do carro, depois a porta, as vozes.
Estão novamente em casa!
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Abrão Brito Lacerda
Abrão Brito Lacerda
Que legal, Abrão, não sabia que os coelhos eram tão domesticáveis.
ResponderExcluirBela matéria!