Não
é todo dia que se é convidado para uma reunião de poetas. Especialmente quando
não se é um, como é o meu caso. Mas escrevo também sobre poetas, e tomara que
isso acabe me impregnando de algum modo, já que a poesia é um mistério que me
assusta e fascina.
Fascina-me
pela natureza de sua revelação: nem todos conseguem combinar as palavras de
modo a obter o efeito poético. Alguns dirão, talvez a maioria, que tudo é uma
questão de técnica e que poesia se aprende fazendo, que é um oficio de
palavras, etc. Mas não é. Poesia supõe uma afinação entre emoção e palavra -
qualquer que seja a emoção, sublime ou decadente – que não se obtém por simples
querer. Ela não exige sequer um determinado nível de instrução ou cultura (como
bem mostra Patativa do Assaré, “poeta da roça”, como ele mesmo se definia), pode
surgir no ser e depois desaparecer (vejam o caso do Rimbaud, que abandonou a
poesia para ser um reles comerciante nômade) ou manifestar-se na idade tardia (exemplo
da Cora Coralina, doceira a vida inteira que se descobriu poeta na terceira
idade).
Assusta-me
por certa fatalidade ligada à condição poética, exemplificado em tantas figuras
trágicas e dramas pessoais. Devido à natureza do seu tempo (geralmente muito
lento, o tempo da divagação, mas às vezes incrivelmente rápido, como um meteoro),
a poesia é sempre um transporte para fora do mundo, um alumbramento, como diria
Manuel Bandeira. No entanto, somos confrontados
diariamente com a necessidade de sermos regulares, de obedecermos a horários e
compromissos.
No
mais, uma reunião de poetas não difere muito da reunião de uma empresa, com
discussão da pauta, assinaturas, ata e pausa para o lanche. Sem falar do fluxo
de caixa e dos informes da secretaria.
A
sede da APEMT (Associação dos Poetas e Escritores do Município de Timóteo) é a
casa da Zaíra, que é também o Lar das Meninas de Ângeles, onde ela acolhe garotas
carentes, criadas como se fossem suas filhas. Além de dedicar-se à literatura,
com doze livros publicados, entre poesia, contos, crônicas e literatura
infantil, a Zaíra de Carvalho nutre-se de compaixão pelos desafortunados, fonte
de sua grande sabedoria.
Fico
sabendo através da biografia publicada em seu segundo livro, “O Choro da
Criança na Missa do Prefeito” (1983), que essa decisão tem a ver com seu
passado no seio de uma família numerosa, cuja mãe e filhos passaram por grandes
dificuldades após a morte do pai. A própria Zaíra quase morreu... de fome! Mas
reergueu-se, sólida como um carvalho. Através de muita luta e superação, cursou
faculdade, tornou-se professora, depois escritora, passando a fazer, a partir
da sala de aula, a crônica de Timóteo, antiga Acesita, cidade que faz parte da
região das indústrias do aço, em Minas Gerais.
Muitas
de suas histórias são fábulas e têm o fito de educar e instruir. Alguns trechos
são de uma bela prosa poética:
“A tarde estava linda. Uma onda de otimismo
pairava no ar e convidava-nos para um passeio. Saí sem destino, curtindo as
carícias do vento roçando-me o rosto. O sol se recolhia deixando para trás um
manto doirado enquanto outro manto de alegria agasalhava meus passos.”
Há
belas metáforas:
“Às tardes, o portão espia sua chegada com
um sorriso aberto.”
Correlação
de movimentos internos e externos, em ótimas frases:
“O carro corria pelas estradas e a emoção
dentro delas.”
E
um humor que lembra muito os arranjos verbais deste cronista que escreve:
“Nestas alturas as galinhas fogem
apavoradas. Sabem que se o camarada entrar, uma delas será condenada à morte. Como
não tem Sindicato e nem “Centro de Defesa dos Direitos Galináceos”, o recurso é
correr o mais que puderem.”
Enfim,
a sabedoria, essa virtude que só é acessível a quem incorpora o outro em sua
própria existência:
“A felicidade está dentro do sujeito como o combustível
do carro. Só aparece quando está em movimento. A saída é para fora e nunca para
dentro de si mesmo.”
Além
do livrinho da Zaíra, voltei para casa como feliz proprietário de duas
coletâneas dos Poetas do Vale do Aço, das quais selecionei a edição de 2013,
intitulada “O Vale em Poesia” para compartilhar com os leitores. São 18 poetas,
de idades e estilos variados, expressando-se em geral através de versos simples
e sentimentais, frequentemente com apelo religioso e em torno de temas do
dia-a-dia. Citar apenas alguns dentre eles significa incorrer em possível
injustiça, mas esta é uma crônica breve, que, tomara, desperte em quem leia o
desejo de buscar os livros comentados.
Há belas gemas
incrustadas no livro, algumas lapidadas, outras em estado bruto, como este
poema da Aila Araújo Costa:
DOBRADURA
Na beira de um rio
Um velho e um menino
Estavam a brincar
Na areia e no rio
Vários barquinhos
Que estavam a navegar
Ao lado do velhinho
Vários aviõezinhos
Preparados para voar
Uma pilha de papel
Com aquela cor de mel
Que serão belas molduras
Pra enfeitar suas aventuras
E é essa história
Que eu te contei bem agora
Da dobradura de papel
Papel cor de mel.
A Aila tem apenas 14
aninhos, mas já sabe da poesia. E como sabe? Em primeiro lugar, é preciso dizer
que a poesia é como o amor, algo simples e universal, fácil de sentir, mas
difícil, talvez impossível, de explicar. Ela não está no arranjo das palavras
em forma de versos, nas rimas ou mesmo no sentimento. Ela é a fagulha que parte
quando o verbo e a emoção se encontram e comunicam sua mensagem, mensagem de
recriação do mundo, do mistério insondável da existência. É preciso ter uma
anteninha capaz de extrair a eternidade do circunstancial, coisa que a Aila
possui.
No seu poeminha, ela
retrata uma cena singela, brincadeira de infância, afeto, comunhão entre o
velho e o menino, reunindo assim os tempos da existência - e, portanto, a
eternidade - e encerra tudo na hábil dobradura do papel - a dobradura do
barquinho que vira a dobradura da página em que ela escreve. Escrito e dobrado,
o material (barquinho, papel, rio, areia, tinta) encerra um mistério: a poesia.
Ponha no bolso e leve, leitor.
Para realizarmos um salto
nas idades, transcrevo abaixo parte do poema “Maluco Beleza” da Maria de
Lourdes Toledo, poetisa de 76 anos, que celebra igualmente a vida no que ela
tem de essencial:
MALUCO BELEZA
Sou maluca
Lelé da cuca
Não jogo sinuca
Não danço mazurca
Sou fã do Sivuca.
Sou contente
Mesmo doente
Com falta de dente
Lucidez ausente
Ainda sou gente.
Uma gargalhada de prazer
pelos versos da dona Maria Maluca de Lourdes!
Enfim, um poema de Stelio
Nobre Maia, que possui nobreza no nome e nos versos. Trata-se de um poeta
feito, na idade e no trato da língua: preciso, delicado, generoso:
O CATADOR DE CARANGUEJOS
Todos juntos, amarrados...
E pendurados em tiras
De vegetal, bem ligados,
Ou, até mesmo, de embiras,
Formam “corda” os caranguejos
Para o pobre vendedor
Conduzi-los aos festejos
À mesa do comprador.
O leigo não imagina
A saga tão aviltante,
A cruel e dura sina
Do catador tão distante:
Mergulhado em densa lama,
Ao pé do mangue agachado,
A esgueirar-se da trama
Leva, assim, o seu achado.
Coitado daquele homem
A rastejar em chão de lama
Naquele mangue além,
Sem atentar que o drama,
Na visão dos que bem comem,
Considera o pobre homem
Um caranguejo também.
Alagoana de nascença, seu
Stelio tira rima e métrica de ouvido, coisa de quem traz na memória o repetente
e o cordel. O fecho é igualmente típico da poesia nordestina, o que não tira em
nada seu mérito. Este poema poderia ser assinado Ferreira Gullar ou João Cabral
de Melo Neto.
Seu Stelio, caso venha a ler
estas linhas, saiba que o senhor merece publicar muito mais. E, na
eventualidade de fazê-lo, não se esqueça do autor desta crônica.
Escrever, contar e
recontar. Reinventar a vida através da escrita. Extrair da matéria bruta a
emoção suave. Sempre agora, nunca tarde, como se lê nos versos da Zaíra:
“Velhice é a aurora / De outro amanhecer.” Não importa a idade, cada dia é um recomeço.
©
Abrão Brito
Lacerda
Timóteo,
01/03/18
Que crônica feliz, Abrão. Conheci as publicações da APEMT através da Dorinha (sua ex-colega de pintura), que participou de algumas edições anteriores.
ResponderExcluirJá era uma homenagem necessária e merecida. Parabéns à Zaíra e a você também, pelo compartilhamento.
Grande abraço!
Despertar no leitor o desejo de conhecer a obra, temos isto em comum. Temos também em comum o fato de tratarmos o anônimo e o célebre com a mesma medida. Além disso, evidenciar a grandeza humana por trás de cada trabalho, este é um dos objetivos da arte.
ExcluirUm abraço para você também, amigo.